A era do conhecimento por simulação?

Pii
4 min readAug 30, 2023

A disputa pelo território do povo Xokleng se converteu em uma revisão reacionária sobre o entendimento geral do que caracteriza um território indígena. Isso porque o caso levado à suprema corte foi considerado de repercussão geral, uma decisão unificada pela constitucionalidade ou não da tese do marco temporal, que estabelece que os territórios indígenas são aqueles comprovadamente ocupados na data de promulgação da constituição de 1988.

Se uma decisão favorável ao marco temporal é um pesadelo para os povos indígenas e meio ambiente. Por outro lado, parece razoável presumir que uma indecisão sobre a validade da enfadonha tese daria carta branca para que a contestação aos territórios indígenas sob esse pretexto ocorresse no nível local. Não apenas as disputas poderiam se multiplicar como a divergência de decisões seria fomentada. Nesse sentido, o marco temporal parece um exemplo de decisão que requer uma resposta padronizada. Ainda que uma problemática tão racista jamais devesse emergir ao centro das atenções de uma democracia séria.

Todavia, no lugar de uma decisão prévia, o acumulo de experiência não seria um meio para aprender sobre qual a melhor decisão, ou quem sabe permitir que a sociedade se autorregule?

Colocando dessa forma, meu argumento é de que o marco temporal é um exemplo de problemática de poucos casos. Ainda que a longo prazo, a experiência gerada a partir de casos dispares e encadeados de disputa territorial jamais atingiria um número robusto de exemplos.

A insuficiência de dados seria resultado da própria disparidade dos casos, bem como dos efeitos que cada disputa territorial traria sobre a força das populações indígenas, a integridade geral das terras indígenas e a saúde do planeta. Dado a diversidade de atores e os diferentes arranjos de correlações de força, é possível supor que a variedade ou singularidade de casos tornaria a base de dados — abastecida de poucos exemplos — inadequada e, para agravar, cada novo caso computado repercutiria na situação (nas características) de cada caso em aberto, podendo tornar o conjunto ainda mais heterogêneo. É como se um computador não fosse capaz de determinar uma resposta segura sobre o que aconteceria, de acordo com cada opção de resolução adotada, devido à insuficiência de dados.

O neoliberalismo pode ser descrito como a não intervenção (não regulamentação) de processos sociais em aberto, a favor da livre multiplicação dos eventos, desde que alinhados com a lógica do livre mercado. O aprendizado ou autorregulação seria obtido desproporcionalmente as custas dos despossuídos do mundo, as cobaias da ideologia dominante. Experiências emancipatórias, evidentemente, figuram para além do limiar de corte do experimentalismo neoliberal e são continuamente reprimidas por seu aparato jurídico militar. No final das contas, contudo, por mais que existam precauções desigualmente voltadas aos mais ricos, o efeito agregado dessa etapa do capitalismo é uma governamentalidade globalmente temerária.

Uma outra abordagem, que não a da análise dos casos reais, seria simular cenários realistas, por exemplo, correlacionando diferentes níveis de desmatamento e genocídio indígena — populações integrantes desses biomas — com graus diversos de colapso socioambiental planetário. Isso viabilizaria que a resposta adotada na arena política fosse “científica”, uma probabilística baseada em um grande repertório de exemplos simulados, de cenários previstos de acordo com as mais diversas condutas adotáveis.

Entretanto, diante dessa aparente solução hipotética, restaria perguntar quanta energia seria consumida para rodar esse conhecimento por simulação?

Como explica Sérgio A. Silveira — em Simbioses do Humano & Tecnologia — , na inteligência artificial a abordagem simbólica, baseada na manipulação de símbolos por meio de regras lógicas, acabou perdendo força, devido a dificuldade de codificar o conhecimento e para enfrentar elementos externos ao código. Em seu lugar, prosperaram as abordagens conexionista e a de aprendizado profundo, uma baseada em classificação via redes neurais e outra focada no aprendizado pela experiência. Nos últimos dois casos, a inteligência artificial demanda muito poder computacional e um grande volume de dados (Big Data). Na hipótese de atingirmos uma alta confiabilidade do conhecimento gerado por esses métodos, ainda restaria saber se os recursos consumidos seriam renováveis e recicláveis? Vale se perguntar, ademais, se existe algum limite intrínseco na demanda por conhecimento, por detalhamento, por garantias, se haveria alguma barreira natural que impedisse que essas novas inteligências acabassem voltadas umas contras as outras drenando todas as energias sociais em sua punheta intelectual?

Ainda que atingíssemos uma sociedade com abundância energética, não seria essa abundância outro fator de complexificação do social? Com mais energia, maior seria o potencial para expandir a malha social e multiplicar os elementos e fatores implicados no problema da disputa territorial — para me ater ao exemplo. Consequentemente, as simulações para serem razoavelmente válidas precisariam ser ainda mais sofisticadas, possivelmente, consumindo ainda mais energia. O ponto é que a controvérsia científica, a disputa intelectual, pode também ser efeito de uma realidade altamente incerta, independente da vaidade ou esquizofrenia de seus entes eruditos.

Pierre Levy, em As Tecnologias da Inteligência, argumenta que a escrita permitiu abstrair a pessoalidade da palavra falada, se afastando do mito amarrado ao contexto particular para desenvolver o conceito, capaz de operar com generalizações mais robustas. Um salto qualitativo igualmente significativo viria da superação do conceito textual, como paradigma de tecnologia intelectual, pela adoção da simulação informática. Resta considerar o que esse candidato a novo paradigma intelectual significaria em termos de prioridade energética da dita civilização? Finalmente emergiria a era da razão ou a atualização do apetite energético da civilização seguiria justificando novas rodadas de negligência e ataque aos atrasados?

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Pii

Transumanista crítico da ideologia do progresso. Ateu a procura de mais sentidos para a vida, além dos limites do materialismo utilitarista. Pessoa criativa.