FANON — Peles Negras, Máscaras Brancas [Resumo Completo]

Pii
21 min readMar 24, 2024

Resumo do livro Peles Negras, Máscaras Brancas, de Frantz Fanon. Realizei essa leitura no terceiro ano de graduação, na disciplina de Pensamento Social Caribenho, ministrada por João Felipe Gonçalves. Revisei o resumo para compartilhar com os estudantes do cursinho popular da psicologia, que acontece dentro da USP.

Capítulo 1 — O Negro e a Linguagem

Para investigar a dimensão para-o-outro do negro Fanon analisa a linguagem, pois esta seria um “existir absolutamente para o outro” (p. 33). Nesse âmbito, o negro tem duas dimensões, a para com o negro e a para com o branco. E, considerando que toda linguagem (e seu apropriado domínio) possui implícita em si uma cultura, “todo povo colonizado […] toma posição diante da linguagem da nação colonizadora” (p. 34). Quem vai à França busca disfarçar seu sotaque (que engole o r) e voltar às Antilhas — para ser consagrado — forçando o sotaque estrangeiro; quanto mais embranquecido, menos colonizado, mais homem. O patoá (idioma crioulo) é recriminado desde a infância e os filhos dos burgueses devem aprender o francês da França.

Fanon rejeita o positivismo que reduz o homem a um objeto analisável a partir da postulação de um caso social típico — em relação ao qual determina-se as anormalidades –, fora do campo filosófico, como qualquer outro animal biologicamente determinado. Ainda assim, afirma consentir, fora do campo filosófico, a analisar o homem a partir da psicanálise.

O humano recém-retornado da França é aguardado avidamente, este é identificado como quem passou por uma clivagem; sua linguagem é a prova da mudança, e [ao ser apreendido em uma nova dimensão] os termos de sua recepção são distintos dos empregados aos demais: nenhum erro de linguagem é perdoado nos que adotam ares parisienses. Essa mesma clivagem, da percepção do embranquecimento enquanto evolução, pode ser notada na hierarquização dos negros antilhanos sobre os negros africanos; na qual os últimos, mais selvagens, destacam a maior proximidade dos primeiros com os brancos. Enquanto os africanos investem em boa literatura em linguagem nativa, o idioma patoá dos antilhanos tende a ser suprimido com o avanço do ensino, pois não se trata de afirmar a própria identidade, mas de afirmar-se perante a metrópole.

Não, na perspectiva adotada aqui, não existe problema negro. Ou pelo menos, se existe, os brancos não se interessam por ele senão por acaso (p. 43).

A igualdade da condição humana, entendida como igualdade de capacidades, seria a emancipação do racismo? Ou melhor, tais capacidades são pertinentes à emancipação humana? Fanon não objetiva provar a igualdade negra, seu objetivo é libertar os negros dos complexos resultantes da colonização. Assim, deve-se diferenciar uma psicologia inumana, e curá-la. Não significa negar a existência de casos normais (não complexados), e generalizar a anormalidade, mas sim focalizar o patológico, que é identificável, por exemplo, no comportamento de infantilizar paternalmente o outro (tomado por incapacitado). Nesse caso, ir até o outro, também é estigmatizar o outro, torná-lo apreensível [como um objeto compreendido à exaustão, ou que sem maiores temores se pode descartar as peculiaridades que possui, como se fossem irrelevantes ao entendimento]. Mais, é tomar por certo que o outro não possa igualmente vir até o eu [e uma verdadeira comunicação não exigiria um mútuo deslocamento?].

Encontro um alemão ou um russo falando mal o francês […] mas não esqueço que ele possui uma língua própria, um país, e que talvez seja advogado ou engenheiro na sua cultura […] No caso do negro, nada é parecido. Ele não tem cultura, não tem civilização, nem “um longo passado histórico” (p. 46).

Tantos as propagandas publicitárias, das quais se cita uma marca de farinha de banana com ilustrações pitorescas e racistas, feitas por De Andreis, ou a retratação do negro, de modo jocoso, boçal e servil, feita pelo cinema francês — mencionando Requins d’acier, Sans pitié e Duel au soleil –, atestam os esteriótipos típicos imputados aos negros. O negro precisa se livrar de seus arquétipos (imagens estereotipadas), deixar de ser refém de tais imagens, de uma essência eternizada, “de um aparecer pelo qual ele não é responsável” (p. 47). “Compreende-se que a primeira ação do negro seja uma reação” (p. 48) contra os esteriótipos de definição do negro, em prol de uma assimilação ao universal branco. Doravante, uma inibição de tal reação assimilacionista pode ser promovida por outros negros que, ao afirmarem-se na particularidade de tal arquétipo, repreendem os que desejam transgredir o lugar devido ou a essência verdadeira do negro.

Ao apresentar Aimé Césaire como poeta negro, a marcação adicionada a categoria poeta deixa implícito que poeta, em sentido universal, não são negros, e sim brancos. Sobrepor o arquétipo racial àqueles que deste buscam se desvincilhar (no caso de Césaire, este afirma positivamente a racialidade [sua negritude], assim, afasta-se das definições negativas imputadas aos negros), não passaria de uma perpetuação do racismo. Assim, mesmo que os conteúdos das afirmações possam ser aprovados, quando estas salientam ou ressalvam a racialidade, incorrem no erro de aprisionar determinadas pessoas a esta.

Capítulo 2 — A Mulher de Cor e o Branco

“O Homem é movimento em direção ao mundo e ao seu semelhante” (p. 53). O movimento humano pode ser de conquista, assim como, de cuidado. A relação com o ser amado colabora à virilidade (potência) do sujeito e o amor do outro incide sobre a superestrutura valorativa do sujeito. Assim, pode haver amor autêntico entre mulheres negras e homens brancos, considerando o complexo de inferioridade e o estímulo à compensação, ou trataria-se de um amor-fracasso (pautado em má-fé e inautenticidade)?

Gostaria de ter me casado, mas com um branco. Só que uma mulher de cor nunca é realmente respeitável aos olhos de um branco. Mesmo se ele a ama. Eu sabia disso (Je suis Martiniquaise, autobiografia de Mayotte Capécia) (p. 54).

O poder econômico é socialmente entendido como um modo de embranquecimento, trata-se da “dialética do ser e do ter” (p. 55). Mais do que isso, a inclusão no ciclo social branco altera e atesta a alteração do status da inclusa. Porém, tal ciclo social é idealizado (de forma dominante) e não previamente vivenciado, assim, torna-se um sonho infantil, frente ao qual a relação amorosa com o outro não deveria realizar, mas sim superar (abolir). Tal sonho infantil desembocaria numa visão maniqueísta do mundo: “branco ou preto, eis a questão!” (p. 56).

O número de frases, de provérbios, de pequenas linhas de conduta que regem a escolha de um namorado é extraordinário nas Antilhas (p. 57).

A não aceitação do próprio status social de raça inclui, como nos exemplos apontados por Fanon, primeiro, a estigmatização dos pares [as fragilidades internas são identificadas (sem o compartilhamento de uma empatia, provocada pela identificação de condições semelhantes que geram um pertencimento a uma identidade comum) e projetadas nos “outros”, que fragilmente podem ser assim distintos; e essa mesma fragilidade de se diferenciar do grupo inferiorizado poderia incentivar a hostilidade e o ímpeto de desumanizar tal grupo, em que, relutantemente, o sujeito que quer se afastar segue incluído]. Segundo, a inibição do ego pelo desprazer, afirma Anna Froid, é um processo sadio de desenvolvimento, e que estimula experiências compensatórias; entretanto, o desprazer pode levar à exclusão de certas dimensões da vida, à rigidez e comportamento unilateral do ego, que fecha-se, perdendo certos interesses e desvalorizando suas atividades. “A retração do ego como processo bem-sucedido de defesa não é viável para o negro, pois ele precisa da sanção do branco” (p. 60). “Ser branco é como ser rico, como ser bonito, como ser inteligente” (p. 60).

O ódio não é dado, deve ser conquistado a cada instante, tem de ser elevado ao ser em conflito com complexos de culpa mais ou menos conscientes (p. 61).

No caso da mulher negra, a racialidade branca do outro esvaziaria este de seu conteúdo e valores específicos, induzindo a uma relação onde tudo o mais, que não a brancura, é relativizado e admitido. Já para a mulata, exemplificada no romance Nini, mais do que clarear e acender de status, a preocupação é não regredir em sua “evolução” por conta de um relacionamento com um negro. Não necessariamente tal situação racial precisa ser posta diretamente, a alegação pode ser disfarçada com a referência ao nível de instrução, ou a uma estética mal compreendida, ou, mesmo, a um apelo à subjetividade de escolher livremente pares românticos. Assim, uma mulata, naquele contexto, poderia sentir-se ofendida ao ser cortejada por um semelhante. Eufórica, se pretendida pelo branco (o outro), pois conhece e se importa com as repercussões sociais a respeito de outras mulatas e seus respectivos relacionamentos. Unir-se ao branco, torna a mulata de aspirante à branca, em branca. “Ela foi reconhecida pelo seu comportamento supercompensador” (p. 65), por “apesar de negra” ter suas qualidades.

Com sete anos de experiências e observações, Fanon conclui que, ambos, negros e brancos, são dominados quer por sua suposta inferioridade quer por sua suposta superioridade, numa neurose que sobrepõe seus comportamentos.

“Há no homem de cor uma tentativa de fugir à sua individualidade, de aniquilar seu estar-aqui” (p. 66) [De fugir da relação racial; de fugir de sua posição na relação racial]. Mesmo um comportamento de oposição — isto é, o inverso do esteriótipo — pode resultar de um ímpeto patológico por negar tal esteriótipo e viver apenas essa negação. Portanto um comportamento ainda racialmente determinado [há muitas justificativas para essa atitude, como por exemplo a de uma postura político expressa nessa inversão racializada, todavia, a capacidade ou não de variar no comportamento tende a indicar a rigidez da norma ou contra-norma. Quanto à contra-norma, defino ela como um comportamento entendido como oposto à norma, que constitui a identidade, ao mesmo tempo que se entende que este comportamento não surgiria sem a norma (mas, talvez, se estenderia após o fim da norma), logo, trata-se, também, de uma heterodeterminação sobre a identidade]. Nesse sentido, busca-se neuroticamente por certa inversão dos papéis raciais.

Mas esta é uma pseudo-questão que não abordaremos. Diremos apenas que qualquer crítica do existente implica uma solução, se é que é possível propor uma solução a seu semelhante, isto é, a uma liberdade (p. 68).

Capítulo 3 — O Homem de Cor e a Branca

No caso de Jean Veneuse, muito arrigado aos livros, culto, e funcionário público na Argélia, ele queria mais do que a declaração de amor de Andreia, a sua amada branca, mas também a aprovação do irmão dela (não para a união, mas para o status de igualdade dele, como um branco que só se aparentava negro); não obstante, queria afirmar para si mesmo que inexistia qualquer motivo negro dentro de si que o induzisse aquela relação racial. Para afastar-se de sua racialidade negra, Jean busca o trabalho colonial, onde o contato com os africanos ressalta sua diferença.

É sobre o tripé da angústia que qualquer abandono desperta, da agressividade que ela provoca e da desvalorização de si daí decorrente, que se edifica toda a sintomatologia desta neurose (Germaine Guex) (p. 76).

O tipo negativo agressivo tem obsessão pelo passado e a tendência de repetir suas frustrações; é rancoroso e, incapaz de adotar uma atitude compensadora, tende a atitudes vingativas, à introspecção (que inibe novas experiências, compensatórias); apresenta indiferença para com os demais (inibindo ou falseando suas relações), ausência de segurança afetiva (insegurança interior), de senso de responsabilidade (de possibilidade de intervenção na relação) e, por consequência, paradoxalmente, ao mesmo tempo que se desatrela dos demais (traidores), espera apenas destes a solução de seus problemas (porque pensa que é apenas destes que a relação depende). Ou melhor, age em função e com a ansiedade de que a catástrofe prevista se produza. “Não quero ser amado, adoto uma posição de defesa. E se o objeto persiste, declaro: não quero que me amem” (p. 78). Ele é o amor negado, e não poderá um amor efetivo negar tal identidade (numa dupla negação) o transformando em alguém cujo o amor se realizou. “O sentido de sua atitude é ‘não amar para não ser abandonado’. O abandônico é um exigente. É que ele tem direito a todas as reparações” (p. 78). Qualquer fragilidade na relação afetuosa — inerente a qualquer relação, inclusive as saudáveis — será prova da falsidade alheia e uma reafirmação da impossibilidade do abandônico ser amado. A autossuficiência se apresenta como fuga [pois, independe de uma leitura factual da ação do outro — atitude de permanecer cegamente na defensiva –, ou melhor, como modo de se subtrair previamente da relação; por outro lado, não se pautar por relações patológicas, conseguir efetivar uma análise racional sobre a relação e sobre as perspectivas de intervenção ou mesmo de se rejeitar tal relação, sempre pesando as consequências, todos esses são atributos positivos de uma autossuficiência consciente, à qual convém certa reserva.], esta que não se explica como incontestável racialidade. Jean é um intelectual alheio à práxis.

É preciso reconhecer: tanto no plano da psicanálise como no da filosofia, a constituição só torna-se um mito para aquele que consegue superá-la (p. 81).

Jean Veneuse, retrato de seu autor René Maran, não é um exemplo de relações entre negros e brancos, não é a racialidade que explica sua neurose, assim, Fanon propõe uma psicanálise que consiga analisar aqueles que internalizam a constituição psicológica de homens de cor, com a qual sustentam a pretensão de se compreenderem e de argumentar que uma vez assim compreendida sua suposta situação, ela se torna superável por seus métodos — o problema do complexado seria perseguir soluções para um falso problema, ao passo que sua perseguição o leva a criar tensões verdadeiras. Nesse sentido, para o complexado, mudar de ares não é mais do que uma experiência viciada que visa falsear as conclusões prévias sobre si e as intensificar. Ademais, Fanon reitera a não validade ou problemática de uma tentativa de extensão quer do caso de Jean, quer dos casos de Nini e Capécia, para todas as relações entre pessoas negras e brancas. “De modo algum minha cor deve ser percebida como uma tara. A partir do momento em que o preto aceita a clivagem imposta pelo europeu, não tem mais sossego (…)” (p. 82).

Capítulo 4 — Sobre o Pretenso Complexo de Dependência do Colonizado

Além da intersecção entre as condições objetivas e histórias, o estudo de Mannoni sobre o colonialismo inclui, em sua explicação, “a possibilidade de assumir ou negar uma situação dada” (p. 84); este também considera o impulso colonizador do homem branco como patologia (de supercompensação). Todavia, ao estudar a situação do contato colonial e o complexo de inferioridade nele presente, não faz sentido buscar na infância uma explicação preexistente ao contato, contesta Fanon — haveria nessa, no máximo, predisposições. Outro ponto importante, é que Fanon rejeita a hierarquização valorativa entre formas de racismo, assim como a percepção consequente de que o racismo tanto não teria nexo econômico quanto de que seria mais forte entre os setores médios e pobres [o racismo enquanto preconceito e inaptidão de bons modos sociais, não surpreendentemente, pode estar mais visível entre aqueles mais negligenciados em sua formação como pessoa (e, comumente, com contato mais contínuo e intenso com os outros?); todavia, muitos outros fatores, como a alienação e idealização, podem contribuir para uma atitude racista. Ainda assim, atitude, controle social e beneficiamento não precisam andar juntos]. Muito pelo contrário, a estrutura econômica é que acentuaria nos brancos pobres a exacerbação do racismo sul-africano, para garantia de suas condições econômicas, desfavoráveis entre os brancos, mas privilegiadas em comparação com os negros.

“Com efeito, ele oferece ao malgaxe [pessoa de Madagascar] a opção entre a inferioridade e a dependência” (p. 91 ). Para Mannoni, os casos de anormalidade, excepcionais, resultariam da rejeição da condição de dependência do colonizado para com o colonizador, que resultaria em reação negativa do colonizador e, perante a impotência do colonizado, sua inferioridade flagelaria este último (por experimentar a derrota). Entretanto, Fanon argumenta, primeiro, que todo componente de um grupo (todo cidadão de uma nação) tem responsabilidade pelos atos desses grupos; segundo, é o senso de superioridade europeia que gera seu outro, o ser inferior [presente enquanto objeto de estudo, ou personagem de narrativa, ou projeções racistas ante o meio colonial].

Após ter confinado o malgaxe nos seus costumes, após ter realizado uma análise unilateral de sua visão do mundo, após ter descrito o malgaxe em ambiente fechado, após ter pretendido que o malgaxe mantém relações de dependência com os ancestrais, características altamente tribais, o autor, desprezando qualquer objetividade, aplica suas conclusões a uma compreensão bilateral — ignorando deliberadamente que, desde Galliéni [militar francês, colonizador de Madagascar], o malgaxe não existe mais (p. 91).

[O autóctone (originário) enquanto estereótipo preso ao passado é tanto a recusa, por parte dos colonos, da existência desses sujeitos no presente colonial com seus modos de vida atípicos, quanto a negação de variações ou alternativas ao projeto colonial — sendo ou não contraposições críticas — produzidas pelos nativos, já que os únicos sujeitos seriam os próprios colonos ou suas réplicas adestradas fajutas, ambos representantes de uma atualidade, de algo posterior ao mundo não colonizado. Assim, cabe pensar os colonizados não como um passado vivo, tampouco como povos assimilados pelo status quo, mas como produtores de outras “atualidades”, possivelmente mais promissoras do que a noção estereotipada de que modos de vida tradicionais seriam uma sobrevivência acidental fadada ao desaparecimento.]

(1) Quando um negro tem o desejo inconsciente de tornar-se branco, este sofre de um complexo de inferioridade (branquear ou desaparecer) e corre o risco de desmoronar psicologicamente. (2) Não apenas isso, se tal desejo é tão intenso, significa que este sujeito vive numa sociedade que propicia as condições para tal complexo; que afirma esse complexo; que depende estruturalmente da existência desse complexo. “Enquanto psicanalista, devo ajudar meu cliente a conscientizar seu inconsciente, a não mais tentar um embranquecimento alucinatório, mas sim a agir no sentido de uma mudança das [não um ajustamento nas] estruturas sociais” (p. 95). Trata-se de passar a estar consciente do inconsciente, do complexo, localizado nas estruturas sociais e, então, escolher como agir (ou o não-agir).

A repartição social da culpa, como Fanon assim a chama, é a dinâmica onde povos dominados são instrumentalizados como instrumento de dominação, a exemplo dos infantes negros, especialmente senegaleses, utilizados contra os africanos do magrebe ou os malgaxes. Ao colocar os homens de cor contra outros homens de cor, o efeito é uma repartição do ódio de povos dominados contra outros povos dominados e, não apenas, contra os colonos brancos. E os esteriótipos imputados aos que são, dessarte, instrumentalizados, devem ser entendidos em seus devidos contextos sociais, tais como o genocídio de 80 mil nativos de Madagascar [é a visão forjada no regime colonial dos colonizados e perante outros colonizados que está em causa]. Nesse sentido, é um equívoco descontextualizar os complexos — com os esteriótipos que os geram — do regime colonial, assim como, aprisionar os sujeitos em esteriótipos como o do “malgaxe” (que não é mais do que uma categoria do branco colonizador). Isso mais não faz do que reforçar o contexto colonial de inferiorização (e objetificação). Manoni, pelo contrário, ao interpretar um fenômeno social enquanto derivado de complexos próprios ao indivíduo patológico [que enquanto categoria, por tabela, condena toda uma cultura à condição patológica], acaba por interpretar o regime colonial enquanto consequência de complexos como o de dependência do colonizado, ou o do colonizador paternalista ou do colono racista — que projeta um estupro imaginário de sua prole branca no homem nativo –, enfim, argumenta que tanto a dependência é uma patologia malgaxe quanto a dominação é um complexo (desda infância) do indivíduo colonizador. Em suma, psiques próprias de um contexto social produzido pela colonização, não devem ser tomadas como causa e origem do sistema que as produziu, como se tais patologias tivessem se formado prévia e independentemente nos indivíduos.

Capítulo 5 — A Experiência Vivida do Negro

“Nenhuma chance me é oferecida. Sou sobredeterminado pelo exterior. Não sou escravo da ‘idéia’ que os outros fazem de mim, mas da minha aparição (p. 108)”. O judeu é sobredeterminado pelo interior, isto é, perde a autonomia desde que opte por afirma-se enquanto tal, contudo, ainda pode passar desapercebido. O homem, se homem negro, é aprisionado no marcador que o reduz e que projeta neste expectativas condizentes a sua negritude, incorpora-o (e o equaciona) aos seus semelhantes negros. Fanon inicia refletindo sobre o conhecimento corporal, da percepção de si no espaço e no tempo, dos movimentos do corpo nas tarefas corriqueiras. Ele admite, dentro da normalidade, a dimensão hegeliana do ser-para-o-outro. Entretanto, aquele “olhe o preto” dirigido a ele, proferido por uma criança branca apavorada, apresentava um conhecimento corporal totalmente diferente, não inato, mas (ensinado e) intransponível — que não resulta das sensações sensitivas, no espaço em descoberta, mas da arbitrária imputação de outrem, o “suplemento” racial. A reação ao marcador racial ou se dá pelo afastamento da experiência corpórea, ou pela afirmação do marcador de identificação. Ainda assim, não importa o complemento que sucede o preto (“bonito”, “civilizado”), não é possível retroceder ao preto, atingir o humano.

A emoção é negra como a razão é grega (Senghor)” (p. 116). O lugar do negro, ou melhor, o lugar personificado como identidade negra aparece como a oposição da sociedade moderna [não como a crítica ao moderno, a qual incorpora aquilo que o moderno exclui ou transforma], e não trata-se da construção de uma oposição, mas sim do resgate da oposição abandonada, a saber, o lugar reivindicado pela negritude — sobretudo, a de Senghor — é o da natureza (oposta ao urbano), é o da emoção (oposta ao racionalismo). Entretanto, Fanon rejeita a redução do negro a uma imagem fundida com a terra, que produziria uma alegada sensibilidade negra inalcançável ao branco colonizador desumanizado — uma sensibilidade territorial supostamente inabalável pela efetiva presença colonial. Quer dizer, são os próprios europeus que, novamente, emparedam o negro em seu devido lugar e afirmam já terem exaurido tais perspectivas de mística da terra. Doravante, outra perspectiva é a da afirmação histórica, que coloca o negro (enquanto negativo do branco) num passado africano, que seria a oposição saudosa do mundo branco, ao mesmo tempo que condena o negro a ser nada mais do que passado [do que vale uma história perante a qual não podemos adotar uma postura crítica e manter nossa autodeterminação presente? E, por postura crítica, de onde podem vir os referenciais epistemológicos que extrapolem a cegueira da descrição negativa — firmada no referencial da civilização branca, que descreve o não-branco sob o olhar da falta de semelhança –, que não também desse passado não-branco?].

Não é com a minha miséria de preto ruim, meus dentes de preto malvado, minha fome de preto mau que modelo a flama pra tocar fogo no mundo: a flama já estava lá, à espera desta oportunidade histórica (p. 121).

Se a identidade é apenas uma ferramenta da revolução, não há nela qualquer passado ou futuro, mas apenas passagem [assim, toda a miséria é, apenas, no calor da conjuntura, palestra motivacional]. A dialética proposta (por Satre) conformava a negritude enquanto antítese do racismo, nada além do que um momento (um derivado) da tese racista, o de sua reação. Contudo, o que significa diluir-se na classe operária? E seria, de fato, a negritude, solúvel na síntese universal (branca)? [A escravidão não será potência, logo, nem o preto nem o branco compensarão e justificarão tal infame teleologia por causar educação ou progresso imprescindíveis. O intelectual negro, dando ou não a última palavra no debate sobre racialidade e racismo, continuará humano amputado, uma categoria marcada, aprisionada nesse debate. E como transpor? Será a transposição branca? Seja como for, se o humano superar a morte, deixará de ser humano (permitindo a crítica ao homem moderno e as demais manifestações humanas até então). Se superar a escassez, talvez deixe de ser produtivo; deixe de ser linear e cumulativo. O universal em questão não é uma abstração, mas a projeção de instituições centralizadoras, ao passo que a diversidade cabe a formas sociais descentralizadas, que compreendam autonomias. As subjetividades resultam de uma dialética inacessível ao indivíduo consumidor, sobredeterminado pela economia, elas demandam uma construção social, com instituições participativas, e um espaço íntimo reservado contra o convite de se entregar, sem reservas, ao todo. De todo modo, se já não estivermos fadados — isolados na plateia que observa a ampliação das forças destrutivas e, quem sabe, a engenharia reversa elitista que persistir –, então, talvez não seja tarde demais, e não careceremos de relógios.] “Irresponsável, a cavalo entre o Nada e o Infinito, comecei a chorar” (p. 126).

Capítulo 6 — O Preto e a Psicanálise

“Nas Antilhas, esta visão do mundo é branca porque não existe nenhuma expressão negra.” p. 135 Para o negro a patologia não provém de traumas internos ao núcleo familiar, por vezes desdobrados na sociedade. Diversamente, é a normalidade da criança negra no interior de uma família negra normal que, ao ter contato com a sociedade, propicia os fatores patológicos das anormalidades que sofrem os negros em sua psique. Quer dizer, é o referencial branco, internalizado pelo negro, que faz tanto o negro estereotipar seus semelhantes (que podem ser vistos como outros) quanto identificar-se como um quase branco — um branco, exceto pela cor. A infância negra se transforma em fonte de inseguranças e traumas, justamente, devido a esses referenciais sociais. As crianças negras antilhanas internalizam o esteriótipo de negro mau e, ao serem confrontadas pelos brancos de sua negritude, vivenciam o choque traumático de se perceberem portadoras do qualitativo negro. A alteridade (diferença) fundamental entre negros e brancos inclui a necessidade assimétrica dos negros de serem validados pelo seu outro, o branco. No âmbito sexual, patente nas patologias consideradas no livro — onde operam mecanismos de substituição (da fonte de um problema por um alvo falso) ou expectativas alucinadas, assentados no local do desconhecido e da alteridade, mais propício à insegurança e ao desconforto –, é a associação do negro a uma potência sexual ilusória, que projeta sobre os brancos uma autopercepção de impotência, que engendra o comportamento fóbico (com o desejo reprimido que lhe é próprio). Fanon, inclusive, argumenta que as mulheres negrofóbicas observadas apresentavam vida sexual anormal.

O exame dos questionários mostrou que os indivíduos mais fortemente antissemitas pertenciam às mais conflitantes estruturas familiares. Seu antissemitismo era uma reação a frustrações sofridas no meio familiar. O que mostra bem que, no antissemitismo, os judeus são objetos de substituição, é o fato de que as mesmas situações familiares geram, dependendo das circunstâncias locais, o ódio aos negros, o anticatolicismo, ou o antissemitismo. Pode-se então dizer que, contrariando a opinião corrente, é a atitude que encontra um conteúdo e não este último que cria uma atitude (J. Marcus) (nota 19).

“O inconsciente coletivo não depende de uma herança cerebral: é a consequência do que eu chamaria de imposição cultural irrefletida” (p. 162). Para o martinicano [pessoa de Martinica] o inconsciente coletivo é branco, tão branco quanto o do francês, isto é, o inconsciente associa ao negro as qualidades que reprova. Contudo, ao se entender negro a reação será ou de negar (disfarçar; reprimir) tal condição ou de afirmar e acentuar aquilo de si que entende por negro (os estereótipos). Pois o negro está associado a certas qualidades (as do negativo do branco; Fanon cita, entre outras coisas, o par de oposição entre luz e escuridão, próprio do inconsciente coletivo europeu, que expressaria noções racistas muito enraizadas de valoração e concepção da realidade), de modo que o negro não identifica sua totalidade enquanto totalidade negra e, portanto, ou tentará a ser parcialmente branco ou irá reafirmar a parcialidade das características humanas imputadas aos negros. Ainda assim, para o branco, a branquitude é uma totalidade e o negro, de uma forma ou de outra, é só mais um negro.

Capítulo 7 — O Preto e o Reconhecimento

A comparação do negro com o branco é dada no nível institucional [por instituições formais e informais], não advém do indivíduo negro, mas sim da sociedade colonizada que obstrui a relação de identidade e alteridade entre negros com um referencial comparativo branco, hierárquico, e que imputa ao negro uma atitude de dependência. Em outras palavras, a estrutura social impõe aos negros uma identidade racializada, escorada em dinâmicas de comparação e inferioridade.

Ele [o antilhano] sempre está preocupado com o sujeito, nunca se preocupa com o objeto (p. 176).

A consciência do ser é em si e para si (com finalidade própria) e o é na medida que reconhece um outro que deve reconhecer essa consciência. Ao quebrar o circuito dessa dialética hegeliana o outro permanece como foco da ação, é entendido enquanto algo fechado [não relacional], e acaba destituído de a sua dimensão existencial de ser-para-si [se torna o padrão, a natureza humana]. A operação de reconhecimento deve ser mútua (o outro deve ser entendido enquanto sujeito e não naturalizado), se reconhecerem reciprocamente é reconhecerem a si próprios, é passar da certeza subjetiva à verdade objetiva; ao se reconhecer e se diferenciar é possível experimentar o desejo. O objetivo de saciar o desejo implica num reconhecimento de um valor próprio que valide o direito de desejar e fornessa um algo desejável, disso emerge a busca do desejo, que nada mais é do que se arriscar (por-se em liberdade) frente ao outro (contra o outro) para satisfazer o desejo. “Peço que me considerem a partir do meu Desejo. Eu não sou apenas aqui-agora, enclausurado na minha coisidade. Sou para além e para outra coisa” (p. 181).

Negar que os negros se suicidam é uma forma de desumanização e é nesse sentido que Fanon rebate tais afirmações infundadas [vale citar o primeiro capítulo de Jacobinos Negros (p. 29–31), de C. L. R. James, que aborda o envenenamento e infanticídio durante a escravidão, ou mesmo a prática de se lançar ao mar, em suma, as muitas modalidades de resposta suicidaria à condição de escravidão] — inclusive, menciona como Durkheim, de modo análogo, afirmava que os judeus não se suicidavam.

Quando acontece de o preto olhar o branco com ferocidade, o branco lhe diz: “Meu irmão, não há mais diferença entre nós”. Entretanto o negro sabe que há uma diferença. Ele a solicita. Ele gostaria que o branco lhe dissesse de repente: “Preto sujo!” Então ele teria uma oportunidade única de “lhe mostrar” …

Porém normalmente não acontece nada, nada além da indiferença, ou da curiosidade paternalista (p. 183).

Fanon afirma que, pelo menos no caso antilhano [embora o exemplo do Haiti parece ser de todo contrário frente a essa memória considerada], o reconhecimento do negro foi incompleto pois este não arriscou sua vida para tanto, não rompeu com a oposição entre servos e senhores, mas se viu atingido pela mudança de política dos senhores brancos. Dessa insuficiência, o autor reconhece no comportamento negro a necessidade de reafirmar uma alteridade frente ao branco, para poder se reconhecer ainda no interior de tais esquemas de oposição hierarquizados.

À guisa de Conclusão

[…] a alienação intelectual é uma criação da sociedade burguesa (p. 186).

“Não existe missão negra. Não existe fardo branco” (p. 189). Fanon busca o universal, no presente e para um futuro. Rejeita o apego ao histórico, pois não seria o passado um valor em si, da mesma forma que a reconstituição de uma memória mais plural pouco teria a oferecer à situação concreta dos homens de cor explorados; situação esta que, também, não muda pela culpa ou quaisquer determinações retroativas. O argumento central do autor é que uma consciência livre determina o corpo, não é determinada pelo corpo. [Resta a questão do que se mantém no presente e para onde esse presente aponta? Se o presente é verdade e valor em busca de uma conciliação revolucionaria, ou melhor da sua realização através da superação das contradições, para que tipo de resultado essa realização aponta?]

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Pii

Transumanista crítico da ideologia do progresso. Ateu a procura de mais sentidos para a vida, além dos limites do materialismo utilitarista. Pessoa criativa.