LATOUR, Bruno — Jamais Fomos Modernos: Ensaio de Antropologia Simétrica (1994) [1991] [Resumo Completo]

Pii
17 min readNov 19, 2023

Compartilho o resumo desse livro clássico de Bruno Latour. Em linhas gerais, é apresentado um arcabouço teórico para a teoria do ator-rede pautado na aspiração de superar a cisão teórica entre ordem natural e ordem social, principal base da divisão disciplinar das academias modernas e alicerce do que seria um pensamento distinto das demais culturas. Ainda que a obra endosse de modo apreçado a compreensão da ciência e indústria modernas como autoria e excepcionalidade ocidental, a proposta de pensamento amoderno abre caminho para uma construção de saberes menos assombrada pelas cisões e rivalidades da divisão do trabalho intelectual. A proposta é atacar os excessos das teorias purificadoras e substancialistas, a fim de melhor refletir sobre a prática ocidental, marcada pela mediação entre as coisas em si (natureza) e dos humanos entre eles (cultura), caraterística que explica a multiplicação de quase-objetos híbridos — de coisas interdisciplinares, simultaneamente compostas por elementos naturais e sociais.

Capítulo 1 — Crise

Latour começa apontando a natureza híbrida dos conteúdos jornalísticos, a “reza” matinal do homem moderno, onde temas como ciência, política, economia, direito, ficção e técnica são constantemente embaralhados e mesclados. Apesar dessa mistura que constitui os temas (as coisas), o conhecimento é pensado em segmentos e a ciência acaba evocada como uma grande fronteira entre o saber e o exercício do poder, entre as coisas em si e as relações dos homens entre si.

Os estudos baseados na noção de rede e de tradução buscam, justamente, compreender as coisas em si — por mais que apreendidas indiretamente — em seu contexto social, sem cair num positivismo descontextualizado ou negar a eficácia própria das coisas — da ciência, das instituições — , não reduzindo os saberes a jogos de linguagem (à pura semiótica).

Ofereça às disciplinas estabelecidas uma bela rede sociotécnica, algumas belas traduções e as primeiras [as ciências duras] extrairão os conceitos, arrancando deles todas as raízes que poderiam ligá-los ao social e à retórica; as segundas [as ciências sociais] irão amputar a dimensão social e política, purificando-a de qualquer objeto; as terceiras [as ciências do texto], enfim, conservarão o discurso, mas irão purgá-lo de qualquer aderência indevida à realidade — horresco referens — e aos jogos de poder (p. 11).

Para o autor haveria três grandes vertentes da crítica: a da naturalização, da socialização e da desconstrução. Cada uma se alimentando das fraquezas da outra, apontariam, respectivamente, para os objetos (fatos), para o poder socializado e para os discursos. Todas compartilhando a fraqueza de não poderem se misturar e complementar.

Será nossa culpa se as redes são ao mesmo tempo reais como a natureza, narradas como o discurso, coletivas como a sociedade (p. 12)?

A etnografia habitualmente já opera descrições que integram as fronteiras entre o real, o social e o discursivo, contudo, é a própria autoimagem de modernos que faz com que os antropólogos — fiéis à tripartição da crítica — considerem impossível realizar uma antropologia dos modernos, produzindo um retrato inteiriço. Por isso, Latour propõe a necessidade de se reconsiderar o que é ser moderno.
Em 1989 o muro de Berlim é derrubado e as primeiras conferências sobre a crise climática são realizadas, fica patente a dupla falência da ciência e da emancipação humana. A partir daí ou se é anti-moderno, abdicando de dominar a natureza e superar a dominação humana, ou se adota uma postura de ceticismo vacilante pós-moderno, ou se segue moderno sem a mesma eficácia.

“Moderno”, portanto, é duas vezes assimétrico: assinala uma ruptura na passagem regular do tempo; assinala um combate no qual há vencedores e vencidos (p. 15).

A modernidade seria definida por dois conjuntos distintos de práticas, de um lado a mistura (a rede) entre seres híbridos compostos de natureza e cultura e, de outro, a segmentação purificadora (a crítica) que produz a cisão entre os seres humanos e os inumanos. Para Latour é a purificação que permite a mediação/tradução, ou seja, a multiplicação de híbridos, ao passo que a visão mais integrada dos pré-modernos seria menos eficaz em proliferar tais híbridos.

Capítulo 2 — Constituição

Apresentando o estudo de Shapin e Schaffer, o autor explica que Hobbes concebe a ciência política e a realidade como livres de transcendência, o soberano não é divino e sim uma representação necessária e unificadora do aparelho do Estado, da população. Para Latour, a solução hobbesiana para a guerra civil é eliminar qualquer transcendência, seja nas associações opostas ao Estado seja na capacidade destas de produzir outros regimes de validação.

Boyle na Royal Society com sua invenção da bomba de ar que produz o ambiente à vácuo — purificado de variáveis externas — teria largado a lógica, a matemática e a retórica para produzir fatos por meio do empirismo, quer dizer, pela produção de experimentos de laboratório que se reforçam conforme são multiplicados. No lugar de verdades universais, a validação entre pares estaria baseada na reprodutibilidade de experimentos controlados. A inovação de Boyle é aplicar a prática do testemunho a uma nova escala, obtendo um testemunho não-humano. Em especial o corpo inerte — livre de vontade própria ou preconceitos — se torna a testemunha e fonte de registro mais confiável sobre os fenômenos naturais.

Hobbes e seus seguidores criaram os principais recursos de que dispomos para falar do poder — representação, soberano, contrato, propriedade, cidadãos — , enquanto que Boyle e seus seguidores elaboraram um dos repertórios mais importantes para falar da natureza — experiência, fato, testemunho, colegas (p. 30).

Contudo, Latour adverte que Shapin e Schaffer acabam endossando a interpretação assimétrica de Hobbes que explica o conhecimento pelo poder [negando à associação do laboratório qualquer transcendência para fora do social], com sua construção macrossocial monista que reduz o saber a um sustentáculo da ordem social, o que acaba diluindo as coisas em si nas relações dos homens entre eles. Para Latour é preciso tomar os conceitos de “poder”, “interesse” e “política” como construções históricas, não apenas a bomba de ar e o discurso científico associado ao “experimento”.

Boyle criou um discurso político de onde a política deve estar excluída, enquanto que Hobbes imaginou uma política científica da qual a ciência experimental deve estar excluída. Em outras palavras, eles inventaram nosso mundo moderno, um mundo no qual a representação das coisas através do laboratório encontra-se sempre dissociada da representação dos cidadãos através do contrato social (p. 33).

De costas para a cisão, a sociedade política é impotente sem a ciência e tecnologia, enquanto estas são impotentes sem a separação das esferas religiosa, política e científica. O Leviatã é feito apenas de relações sociais, de humanos nus representados por porta-vozes políticos e apenas os humanos fazem a sociedade e seu destino. Já os laboratórios protagonizam experimentos que fazem objetos mudos falarem, que revelam mecanismos naturais, por meio de porta-vozes da comunidade científica.

As contradições advindas da separação entre o mundo natural e o social, das garantias (constitucionais) de independência dada por cada um dos saberes, se resolvem na cisão entre teoria e prática, entre o trabalho de purificação e o trabalho dos híbridos. Essa engenhosa construção teria permitido liberar algumas forças produtivas, via especialização.

Uma quarta garantia, depois da cisão entre teoria e prática, seria a compreensão transcendente de deus, que deixa de intervir no mecanismo natural ou sociedade política, ou mesmo de ser evocado como explicação dos fenômenos naturais ou da origem da sociedade. Assim, deus passa a existir como metafísica transcendente — que ultrapassa tanto a natureza quanto a sociedade — e recurso imanente ao foro privado, uma forma de criticar a ciência das coisas e a dos humanos. Essa seria a terceira dupla de imanência e transcendência, a primeira se refere à natureza que emana da construção do laboratório, mas transcende a ciência natural humana e a segunda é a da sociedade que emana da relação dos homens entre eles, sem deixar de transcender o contrato social ao se valer das coisas e da natureza em sua construção.

As primeiras Luzes varreram o obscurantismo do Antigo Regime, enquanto que as segundas Luzes — das ciências sociais — iluminaram a naturalização e ideologia científica sobre os fatos sociais, no século XIX. O marxismo seria o melhor exemplo da dupla indignação contra o obscurantismo e a ideologia científica.

Os seis recursos da purificação — a natureza transcendente, a natureza experimental, a sociedade do contrato, a sociedade transcendente, o deus distante e o deus íntimo — não se apresentavam em conjunto no discurso, apenas na prática mediadora, portanto, se alimentavam das fraquezas uns dos outros e compunham uma crítica interna ao conjunto.

O funcionamento da prática mediadora à luz da teoria purificadora tem por efeito, por exemplo, permitir uma acelerada [imprudente] socialização de objetos sem pôr em risco a concepção da ordem social [alicerceada na essência ou substância, produto da postulada redutibilidade de todos os elementos a certas formas puras, a ordens cognitivas mutuamente excludentes].

Quanto mais a ciência é absolutamente pura, mais se encontra intimamente ligada à construção da sociedade (p. 47).

Para nós, modernos, desvelar era a tarefa sagrada. Revelar sob as falsas consciências os verdadeiros cálculos ou sob os falsos cálculos os verdadeiros interesses (p. 48).

“Jamais houve um mundo moderno [de uma cisão prática entre natureza e cultura]. O uso do pretérito é importante aqui, uma vez que se trata de um sentimento retrospectivo, de uma releitura de nossa história. Não estamos entrando em uma nova era […] não tentamos ser ainda mais espertos, ainda mais críticos, aprofundar mais um pouco a era da desconfiança […] Essa atitude retrospectiva, que desdobra ao invés de desvelar, que acrescenta ao invés de amputar, que confraterniza ao invés de denunciar, eu a caracterizo através da expressão não moderno (ou amoderno).” p. 51

Além da adesão às cisões entre natureza e cultura, teoria e prática, os adeptos das perspectivas modernas, antimodernas e pós-modernas concordariam com a concepção moderna do tempo como uma flecha irreversível para frente (desenvolvimento).

Capítulo 3 — Revolução

A proliferação de híbridos, de quase-objetos, de entidades incompatíveis com a compartimentação rígida entre ordem natural e social — objeto e sujeito — teria saturado o quadro constitucional da modernidade. A saber, a explosão demográfica, o Antropoceno, a biotecnologia, dentre outras questões seriam o exemplo de um mundo cada vez mais dependente de mecanismos naturais humanizados e de representações sociais apoiadas nos mesmos. A exemplo do sistema rodoviário que coloca em movimento forças naturais humanizadas e humanos mediados por objetos de alta velocidade.

A primeira estratégia de enfrentar a existência dos quase-objetos — atrelada à própria constituição da modernidade — se encontra nas filosofias de distinção entre objetos e sujeitos. É em Kant que os extremos puros, de coisas-em-si inacessíveis aos sujeitos e de sujeitos transcendentais ao mundo objetivo, se tornam canonicamente separados, ao passo que a mediação é pensada como instância intermediária, cruzamento das formas puras. Com a dialética a separação é elevada ao grau de contradição entre os polos e, em nome de uma reconciliação futura, os dialéticos passam a operar uma totalidade entre as duas ordens modernas e o reconhecimento de um mundo pré-moderno. Por isso, eles foram os maiores modernizadores.

Mas os quase-objetos continuavam a proliferar, monstros da primeira, da segunda, da terceira revolução industrial, fatos socializados e humanos que se tornaram mundo natural. Mal eram finalizadas, as totalidades rachavam por todos os lados. Os fins da história, apesar de tudo, davam continuidade a uma história (p. 57).

A fenomenologia teria abdicado de elaborar os polos do objeto e do sujeito (recalque), propondo uma zona intermediária desesperançosa quanto à possibilidade de apreender as essenciais, mas norteada pelos mesmos extremos — modernizadores inquietos.

Após a fenomenologia entraria em cena correntes pós-modernas, advocando uma incomensurabilidade entre os polos. Desse modo, a hermenêutica aparece como a pureza do sentido, livre do e inconciliável com o mundo natural. Simetricamente um naturalismo ainda mais exacerbado ganha força nos estudos da ordem das coisas. Por sua vez, Habermas sustentaria a proposta de recusa à racionalidade natural e técnica — do conhecimento do objeto — em nome da razão comunicativa, de uma “objetividade” (razão) pautada nos acordos entre os humanos, ou da separação entre objetividade técnica e comunicação.

A semiótica ou filosofia do texto autonomizou o discurso, que deixou de ser um meio transparente entre sujeito e objeto. Livres do referencial e da identidade do sujeito, essas correntes conceberam a realidade como efeitos de sentido produzidos pela linguagem, pelos significantes.

De onde nos vem a ideia de um tempo que passa? […] Os modernos têm a particularidade de compreender o tempo que passa como se ele realmente abolisse o passado antes dele. […] Não se sentem distantes da Idade Média por alguns séculos, mas separados dela por revoluções copernicanas, cortes epistemológicos, rupturas epistêmicas que são tão radicais que não sobrou nada mais deste passado dentro deles […] Já que tudo aquilo que passa é realmente eliminado, os modernos têm realmente a sensação de uma flecha irreversível do tempo, de uma capitalização, de um progresso […] Querem guardar tudo, datar tudo, porque pensam ter rompido definitivamente com seu passado […] Os historiadores reconstituem o passado com cuidado muito maior, pois este se perdeu para sempre. Estaremos realmente tão distantes de nosso passado quanto desejamos crer? Não, já que a temporalidade moderna não tem muito efeito sobre a passagem do tempo. O passado permanece, ou mesmo retorna (p. 67–8).

Há boas razões para acreditarmos que a ideia de revolução política foi tomada emprestada à ideia de revolução científica (p. 69).

A assimetria entre natureza e cultura torna-se então uma assimetria entre passado e futuro (p. 70).

Como a teoria moderna é purificadora, a incapacidade de rastrear os híbridos acaba por descontextualizar os processos do fazer científico, a ponto de invenções serem entendidas não como um acúmulo de elementos diversos e sim com revoluções radicais [que nada devem ao passado]. Além disso, a concepção de uma natureza experimental transcendental implica numa atemporalidade no interior do laboratório, em contraste com a concepção sempre histórica e irreversível de uma sociedade humana purificada da natureza atemporal.

A temporalidade moderna depende de um alinhamento entre seres heterogêneos, uma coesão sistêmica, onde tudo é atualizado (substituído) para parecer igualmente atual. É assim que ao apagar a concepção religiosa de Boyle e conectar sua invenção a um método científico, o conjunto de elementos que produz a bomba de ar dele é escrutinado e alinhado para associar a invenção com uma prova de ultrapassagem do passado, com uma passagem do tempo, uma vez que os elementos que compõe o instrumento científico seriam todos de um mesmo tempo.

Latour também aponta para a adesão que os antimodernos fazem dessa temporalidade, na condição de retaguarda que se opõe à vanguarda moderna. Da mesma forma que a passagem do tempo emprega tanto a noção de progresso quanto de decadência, para justificar a presença indesejada de diversas épocas em seu presente.

O progresso modernizador só pode ser pensado se todos os elementos que são contemporâneos de acordo com o calendário pertencerem ao mesmo tempo. Estes elementos devem, para tanto, formar um sistema completo e reconhecível. Então, e somente então, o tempo forma um fluxo contínuo e progressivo, do qual os modernos proclamam-se a vanguarda e os antimodernos a retaguarda […] Ninguém mais pode classificar em um único grupo coerente os atores que fazem parte do ‘mesmo tempo’. Ninguém mais sabe se o urso dos Pirineus, os kolkozes, os aerossóis, a revolução verde, a vacina antivaríola, a guerra nas estrelas, a religião muçulmana, a caça à perdiz, a Revolução Francesa, os sindicatos da EDF, a fusão a frio, o bolchevismo, a relatividade, o nacionalismo esloveno, etc, estão fora de moda, em dia, são futuristas, intemporais, inexistentes ou permanentes (p. 72–3).

Suponhamos, por exemplo, que nós reagrupamos os elementos contemporâneos ao longo de uma espiral e não mais de uma linha. Certamente temos um futuro e um passado, mas o futuro se parece com um círculo em expansão em todas as direções, e o passado não se encontra ultrapassado, mas retomado, repetido, envolvido, protegido, recombinado, reinterpretado e refeito […] Em um quadro desse tipo, nossas ações são enfim reconhecidas como politemporais (p. 74).

Entes intermediários pressupõem uma linha polarizada entre duas essências fundamentais, a ontologia da natureza e a da sociedade, que deve enquadrar qualquer outro elemento no dualismo formado. De modo diverso, os entes mediadores podem ser concebidos como responsáveis pela conexão entre um coletivo de elementos que formam infindáveis ontologias — mais ou menos estáveis, estabelecidas ou instáveis — que agregam entes heterogêneos, os quase-objetos ou híbridos. A questão para Latour é compreender a “essência” como uma trajetória de muitos estados construídos historicamente, de modo que as extremidades (essenciais) deixam de ser as referências e os elementos não purificados se estabilizam mediando uns aos outros em agregados. Assim, é possível pensar uma latitude (vertical) para além da longitude (horizontal), onde diferentes momentos da trajetória (essências provisórias) — verticalmente dispostos — ajudam a dimensionar elementos ao longo da linha horizontal formada pelo objeto e sujeito. Quer dizer, com duas dimensões é possível pensar diferentes geometrias para inúmeras ontologias, de modo que as coisas deixem de ser representações ou desdobramentos do dualismo natureza e cultura para acenderem ao caráter de seres, de ontologias.

Para falar das redes, Latour argumenta que na formulação não-moderna os quatro recursos modernos se tornam compatíveis: a natureza externa, a sociedade dos humanos entre eles, o sentido discursivo e a relação coextensiva do ser com os entes que o constituem. É preciso transitar das essências às trajetórias de acontecimentos e da purificação à mediação.

As coisas também podem ser discursos, de modo que os discursos não nos afastam do real, natural ou social, uma vez que os textos são parte da realidade e se misturam com as outras partes não-textuais.

Capítulo 4 — Relativismo

A simetria consiste em interligar as diferentes ontologias, verificando a aplicabilidade dos mesmos princípios em ambos os campos. Estudos assimétricos podem se negar a estudar a ciência — se limitando à cultura — ou se dedicarem apenas a falar da ideologia científica, sem jamais observar a possibilidade de vulnerabilidades conceituais semelhantes na ciência estabelecida. Nesse sentido, é possível considerar que a própria estabilidade da verdade depende dos contrastes estabelecidos com aquilo que se classifica como erro.

Um estudo assimétrico pode considerar que a verdade é explicada pela ordem natural e a falsidade ou erro pela ordem social. Em alternativa, a abordagem simétrica de Bloor se propõe a explicar o verdadeiro e o falso nos mesmos termos — o que evita uma divisão dos saberes a priori –, contudo, isso é feito ao tomar a relação dos humanos entre eles (o social) como fonte de explicações em todos os casos, quer dizer, acaba por suprimir o referencial natural.

Nós, ocidentais, não podemos ser apenas mais uma cultura entre outras porque mobilizamos também a natureza. Não mais, como fazem as outras sociedades, uma imagem ou representação simbólica da natureza, mas a natureza como ela é, ou ao menos tal como as ciências a conhecem, ciências que permanecem na retaguarda, impossíveis de serem estudadas, jamais estudadas. No centro da questão do relativismo encontra-se, portanto, a questão da ciência. Se os ocidentais houvessem apenas feito comércio ou conquistado, pilhado e escravizado, não seriam muito diferentes dos outros comerciantes e conquistadores. Mas não, inventaram a ciência, esta atividade em tudo distinta da conquista e do comércio, da política e da moral (p. 96–7).

A assimetria das investigações entre natureza e cultura se converte na discrepância entre os audaciosos estudos exóticos e os tímidos estudos da periferia da sociedade ocidental. É fácil apontar que a atitude monista de povos pré-modernos, ao misturar as ordens da natureza e da cultura, nada mais é do que uma projeção de categorias sociais sobre uma natureza externa. Mais difícil é, inversamente, ver a atitude dualista moderna como uma necessidade social que distorce uma realidade e prática social muito mais misturadas e indistintas. Contudo, Latour argumenta que não se trata de escandalizar um e outro contexto, a questão é conseguir fazer uma antropologia não periférica dos modernos, o que implica em compreender a constituição moderna para fugir do excepcionalismo.

Todas as naturezas-culturas são similares por construírem ao mesmo tempo os seres humanos, divinos e não-humanos. Nenhuma delas vive em um mundo de signos ou de símbolos arbitrariamente impostos a uma natureza exterior que apenas nós conhecemos. Nenhuma delas, e sobretudo não a nossa, vive em um mundo de coisas. Todas distribuem aquilo que receberá uma carga de símbolos e aquilo que não receberá (Claverie, 1990). Se existe uma coisa que todos fazemos da mesma forma é construir ao mesmo tempo nossos coletivos humanos e os não-humanos que os cercam. Alguns mobilizam, para construir seu coletivo, ancestrais, leões, estrelas fixas e o sangue coagulado dos sacrifícios; para construir os nossos, nós mobilizamos a genética, a zoologia, a cosmologia e a hematologia (p. 104).

Um número muito maior de objetos exige muito mais sujeitos. Muito mais subjetividade requer muito mais objetividade (p. 106).

Com o emprego das polias para movimentar grandes objetos com pouco esforço, o soberano que aglutinava as forças políticas da multidão se torna mais forte que a multidão, pela mobilização da técnica. Embora o recalque do papel dos objetos na teoria política enfatize as relações dos homens entre eles, é a composição da força política com os seres da técnica que sustenta a “sociedade” nesse contexto. Mais do que integrar os objetos ao social, essa mediação permite ampliar a escala das mobilizações, seja em termos demográficos ou em termos materiais.

Os universalistas acreditavam na possibilidade de estabelecer medidas comuns para comprar e equalizar todos os coletivos de naturezas-culturas. O relativismo absoluto ao negar a existência de medidas comuns sem negar a necessidade dessas medidas, invalida qualquer esforço de tradução e comensurabilidade. Ambos esquecem que os padrões métricos precisam ser construídos. Já o relativismo relativista ou reducionismo não capitula ao esforço da comparação e tradução, porém segue as redes empíricas diversas, as quais viabilizam os e se constituem dos esforços de mediação entre entes heterogêneos.

O universal em rede produz os mesmos efeitos do que o universal absoluto, mas já não possui as mesmas causas fantásticas. É possível comprovar “em todos os lugares” a gravitação, mas com o custo da extensão relativa das redes de medidas e de interpretação. A elasticidade do ar pode ser verificada em toda parte, mas somente quando estamos conectados a uma bomba de vácuo que se disseminou pela Europa graças às múltiplas transformações dos experimentadores. Tentem comprovar o mais simples dos fatos, a menor lei, a mais humilde constante, sem antes conectar-se às diversas redes metrológicas, aos laboratórios, aos instrumentos (p. 117).

Uma rede global é local em cada um de seus pontos — o que fica bastante evidente quando dispositivos são desconectados de suas redes e deixam de funcionar, assim como a desconexão corta a presença local da rede — , todavia, a distinção entre geral e local é pouco pertinente para compreender a extensão de processos natural culturais. Antes Latour advoga que o universal só é válido em rede e, portanto, a crença em uma universalidade externa às redes, lugares onde os fatos são mobilizados, é tão peculiar quanto a caracterização de redes menos extensas e pré-modernas como realidades particulares e locais. A diferença entre modernos e pré-modernos estaria na extensão das redes sociotécnicas, mas não muito mais do que nisso, argumenta o autor. A característica das redes é melhor pensada em termos de maior ou menor extensão e maior ou menor conectividade. Suprimir as mediações empíricas leva à crença em verdades científicas ou sociais descontextualizadas e sem origem [“revoluções” e genialidade]. Medir uma instituição global, tal qual uma empresa ou o sistema de ensino de dado país, sem considerar as redes empíricas constituintes da instituição se torna uma tarefa obscura.

O capitalismo de Fernand Braudel ou de Marx não é o capitalismo total dos marxistas (Braudel, 1979). É um labirinto de redes um pouco longas que envolvem, de forma incompleta, um mundo a partir de pontos que se transformam em centros de cálculo ou de lucro (p. 119).

A purificação provoca a noção de imanência, de ordens onde as causas partem daquilo que reside purificado na ordem. Para Latour a transcendência surge simplesmente como definição oposta da imanência, contudo, seria possível pensar em uma transcendência sem oposto, uma delegação, quer dizer, a própria comunicação (enunciação) ativa a existência [no mesmo marco “espacial”] e estabelece meios comuns provisórios para o estudo comparativo. Não seria preciso apelar para totalitarismos, para estados puros e definitivamente estabilizados, a fim de ter um meio comum de residência — de onde tudo é imanente [uma camada base para tudo] — , ao contrário, a própria ideia de movimento contínuo só tem sentido quando a continuidade está constantemente em risco, quando a falta de homogeneidade permite distinguir momentos. É possível observar movimentos de expansão das redes sem supor, com isso, uma totalidade resultante (resultada).

Capítulo 5 — Redistribuição

Como conservar o tamanho, a pesquisa, a proliferação, e ao mesmo tempo tornar explícitos os híbridos? Este é, entretanto, o amálgama que procuro: manter a colocação em natureza e a colocação em sociedade que permitem a mudança de tamanho através da criação de uma verdade exterior e de um sujeito de direito, sem com isso ignorar o trabalho contínuo de construção conjunta das ciências e das sociedades (p. 132).

Latour propõe manter, na antropologia simétrica, o dualismo dos modernos para produzir híbridos, porém, aderir ao monismo dos pré-modernos para melhor teorizar os híbridos. Seria preciso rejeitar a grande divisão entre um Ocidente e o resto, a denúncia crítica, a fim de manter a extensão das redes, a experimentação e os universais relativos. Dos pré-modernos, ademais, seria aproveitável a transcendência sem oposto, bem como a temporalidade relativa por intensidade, uma temporalidade múltipla pós-moderna. Dos pós-modernos ele defende a desnaturalização, desconstrução e reflexividade.

“A transcendência da natureza, sua objetividade, ou a imanência da sociedade, sua subjetividade, provêm ambas do trabalho de mediação sem contudo depender de uma separação entre elas, como faz crer a Constituição dos modernos (p. 138).

Seguir as redes ou fazer a triagem das combinações, de modo não-moderno, seria combinar as associações com liberdade suficiente para não mais opor arcaísmo ou modernização, local ou global, cultural ou universal nem natural ou social.

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Pii

Transumanista crítico da ideologia do progresso. Ateu a procura de mais sentidos para a vida, além dos limites do materialismo utilitarista. Pessoa criativa.