Não existe passado

Pii
12 min readMay 21, 2022

Como podem, lado a lado, existirem pessoas na moda, com expectativa — mais que de vida — de um futuro coletivo sem fim, e fantasmas de carne e osso, cujo destino todos presumem ser, na melhor das hipóteses, o de se diluir aderindo à moda ou o de um inerte descanso em museus?

Para algumas pessoas vivas, a colonização destinou apenas o tempo passado. Não o passado de uma árvore genealógica e territórios decorados com recordações, mas sim um passado genérico, à sombra das estátuas e nomes de rodovias. Já os colonizadores reclamaram para si os direitos autorais da marcha da história; reivindicaram ter o protagonismo em tudo o que eles rotularam como relevante. Mais do que isso, se no tempo presente os ocidentais se sentem e se afirmam tão grandes, é porque reservaram exclusivamente para si, para seu próprio modo de vida, o tempo futuro. Um futuro que se encarregará de herdar e multiplicar a glória dos bandeirantes [1].

Se no presente existem mais desajustados do que exemplares de seres humanos brancos e ideais, pouco importa, pois todos querem aderir a essa promessa de futuro de proporções cósmicas. Seria preciso investir, o mais rápido possível, de corpo e alma, até o último tostão, em um lote no altamente tecnológico futuro ocidental; sob o risco de chegar por último, em desvantagem, nessa especulação imobiliária futurista.

Se a ciência moderna não permite criar fantasias míticas sobre a origem do universo, negando qualquer motivação humana para o surgimento do cosmos, por outro lado, a cosmovisão moderna monopoliza o destino do universo para seus lucrativos negócios, propagandeando mitos sobre o futuro (seu herdeiro). Afinal, nosso breve tempo presente é a “prova incontestável” de que todos os acontecimentos, toda a evolução da vida na terra, estavam destinados a gerar esses belos europeus — espalhados pelo mundo conquistado. Uma vez que, no presente, apenas eles existem (sozinhos com a responsabilidade de existir); ou melhor, eles acreditam que apenas a branca existência deles merece ser levada em conta (pela contabilidade deles).

O mito “europeu” ser adorado pelos europeus, que o mito criou, não é surpreendente [2]. O impressionante é ele ser adorado por aqueles que ele permanece tentando apagar. Para uns, cosmovisão; para outros, migalhas.

Se faz urgente compreender que não existe passado!

Era uma vez… no presente: A história é viva. Apenas mediante à experiência presente de acessar documentos, monumentos, relatos orais, dentre outros registros, é que uma projeção da realidade (presente) pode se produzir, como representação do passado. Sem os registros, a sobrevivência dependerá de uma vaga lembrança oriunda de uma memória duvidosa; ou a recordação será apenas uma vontade posterior ao ocorrido, saciada pela criatividade.

Pertence ao agora tanto aquilo que acabou de nascer (se transformar) quanto aquilo que empedrado, não transformado, é acordado de seu sono pelo olhar de quem o presencia. De igual modo, as muitas interpretações de um objeto dividem a realidade e o presente com esse mesmo objeto que as inspirou. Interpretações estas com o poder de inflar a importância daquilo que se interpreta ou injustiçar a existência do que se menospreza.

Embora nem tudo no presente seja endereçado a datações longínquas, todo ser apreendido como projeção temporal (portal) é, assim como as demais “coisas atuais”, parte da realidade e do presente.

Rotular objetos como, unicamente, artefatos “testemunhas de um passado” significa neutralizar sua fertilidade presente. Limitar tais artefatos a um passado é fazer com que estes só possam dizer sobre um movimento encerrado, absorvido pelo movimento dos legítimos representantes do presente.

De repente, o movimento de dada coisa (“ultrapassada”) é interrompido, a coisa é atada a um “sucessor” [3]. Porém, para o encantamento branco não se trataria de uma perda ou morte. A existência do velho se tornaria uma metade incompleta — uma história pela metade — , com uma outra metade complementar na forma de uma inovação (continuação), que decreta a paralisia do desuso à coisa arcaica, à coisa que se deve excluir. A obsolescência desse “ser preso no passado” não se limita a certos fins e contextos, ao contrário, deve fazer crer que a inovação incorporou todas as qualidades, benfeitorias e possibilidades dos objetos que se transformam em “passados vivos” (fantasmas). Ou seja, tais objetos e modos ultrapassados poderiam, portanto, ser excluídos — exterminados da face da Terra — sem prejuízos à nossa vida.

Veja bem: as coisas podem morrer, as práticas serem abandonadas; nem todas as partes da realidade precisam ser visitadas. O problema é confundir “nossas” escolhas com leis universais do relógio, com uma objetividade proibitória imposta pelo tempo, pelo progresso — pela única direção de progresso possível — , fora do alcance das experiências e vontades humanas. Mais importante: uma história interrompida não pode ser “completada”, continuada, por aquilo ou aqueles que a interromperam!

[Negar vida, requer luto.]

Tudo está no presente somente porque perdurou. Tudo valentemente testemunhou o tempo, se transformando ou não em “novidade”, em coisa de europeu. Porém, privamos certos objetos e pessoas de sua atualidade; menosprezamos a sagaz trajetória que fizeram até a chegada do “hoje em dia”. Concomitantemente, ao fazer isso, dotamos a atualidade — que reside somente nos lugares mais privilegiados — da mais alta moralidade. Como se supõe que nada de bom ou muito relevante fora destruído pelo caminho do progresso, o Supremo Tribunal da Atualidade pode julgar que tudo que não for da sua imagem e semelhança deve ser condenado pela inutilidade ou imoralidade e ir à prisão perpétua do passado (do acabado).

O que define uma era é o que nela existe, mas como existem muitas coisas, a definição é tomada pelas coisas mais relevantes, de maior influência. Se tornam referência aquelas coisas e pessoas que melhor projetam a sua presença sobre a realidade ao seu redor, mobilizando-a em favor de si [4]. Logo, excluído da essência de uma era deve estar tudo aquilo que se acredita ser de sobrevivência inviável, que se supõe estar em vias de desaparecer — mesmo que, por hora, extremamente frequente e recorrente. O “antigo” ou “atrasado” está amaldiçoado pela crença na inviabilidade de que possa repercutir sobre o “futuro” [5] — ressoar não só como farsa ou tragédia, mas quiçá como resolução.

A “grandeza” de cada objeto dita a sua relevância, testemunha os porquês de não ser descartado, ou melhor, rejeitado e escondido, como lixo sem destino [6]. Assim, a presunção de que determinado objeto se estende no passado ou a expectativa de que ele se prolongará pelo futuro são vitais na avaliação do tamanho das coisas, do grau de importância de cada uma ao longo do tempo. É para as coisas importantes que se olha a cada passo dado no escuro, em busca de orientação. Ao passo que esse olhar seletivo mantém tais coisas, personalidades ou modos de vida nesse pedestal de maior impacto social. São as coisas visíveis e importantes que definem que horas são, em que era estamos, quem é que manda na porra toda.

Hoje, as palavras yanomami não estão mais escondidas. Antes, os brancos distantes não nos conheciam. Nós estávamos escondidos como o jabuti no chão do mato (Davi Kopenawa).

Uma causa remota para efeitos de longo alcance: a distorção do contemporâneo social [7] é de caráter extremamente normativo — e especulativo.

Ao se priorizar um estudo mais dedicado sobre certos modos de vida, a despeito de outros, o que se supõe é que aquilo que é priorizado melhor ajuda na compreensão geral do tempo e do espaço — o quando e onde a felicidade deve ser encontrada. Indo além, se algumas culturas não passam de objetos de estudo, ao passo que outras são modos de vida passíveis de adoção (de religiosa conversão), com irresistível influência, o motivo é que não é possível se preocupar com tudo, dar igual atenção a tudo. O que salta aos olhos são as coisas que se apresentam como soluções para os problemas e anseios daqueles que as olham. Já culturas que se preocupam com problemas que os financiadores de estudos não possuem, ou não se dão conta de possuir, no lugar de soluções, só proporcionam o inútil, a perda de tempo. Grandes respostas para perguntas que não fazemos não nos dizem nada [8]. Sob esse critério, o das perguntas capitalistas e eurocêntricas que universalmente importam, épocas de ouro breves e recentes — redutos de bem-estar social — , privilégios de poucos, são amplificadas como projeções de um futuro abrangente e resplandecente, como um universo em contínua formação. Assim, alguns se tornam modelos, sem jamais terem sido médias!

Quem nunca pensa na vida através da analogia de seguir um caminho? Seja um caminho único ou seguido antes por alguém respeitável. Mas a vida não poderia, mais divertidamente, ser pensada como a participação no cultivo de territórios? Com tantos sentidos que podem ser traçados no interior de um território, ir de trás para frente (“viajar no tempo”), ao invés de impossível, se torna uma questão de perspectiva.

Caso o pior dos pesadelos se confirme, restará saber: quantos suspiros a última rosa poderá tirar do antropocentrismo capitalista? Destruir quase tudo e destruir um pouco mais que quase tudo, faz toda a diferença! Logo, poderá a descomunal inflação da rosa reverter a tendência de trancafiar todas as belezas ultrapassadas na cova do passado? Será que a mudança quantitativa da rosa poderia provocar uma mudança qualitativa, um ponto de inflexão, sobre as relações entre os todo especiais e armados humanos e ela, indo de recurso tornado rarefeito à apaixonante sentido fertilizador? Se sim, a era de alguma coisa pequena, escondida em nossa vizinhança, ainda deve estar por vir!

A modernidade é grande para um metropolitano, mas será que tem o mesmo tamanho para todos os condenados da terra, independente de onde estiverem?

[…] Eu nunca me imaginei resgatando nada. Eu sempre me vi atravessando situações de dificuldade e tendo que confrontar a realidade que é contra o meu povo e que declarou a gente extinto.

Uma vez quando o Darcy Ribeiro era secretário de cultura do Brizola, no Rio de Janeiro, e também vice governador dele, eu acho. Eu acompanhei uns outros parentes, uns guaranis lá da Serra do Mar, numa visita pro Darcy Ribeiro. Porque os índios estavam sendo expulsos da Serra do Mar pelo pessoal que estava incorporando aquelas terras ali […] Estava chovendo pra caramba aquele dia, nós chegamos, todo mundo molhado, de chinelo, na porta da secretária e o segurança estranhou aqueles mendigos chegando ali para conversar com o professor Darcy Ribeiro […] Uma das secretárias dele foi lá fora, olhou, e falou: “são os índios” […] Aí ele [Darcy Ribeiro] falou: “hora, põe eles pra dentro, trás eles aqui”. Aí nós entramos e o Darcy perguntou: “ué, de onde vocês são?”. Aí eu falei com ele: “nós somos fantasmas. A gente não estava extinto? Quem morreu não anda. Nós estamos aqui, viemos te ver […] Mas foi uma surpresa pra ele que a gente estivesse vivo. Porque ele tinha escrito um livro Os Índios e a Civilização e têm umas pranchas lá naquele livro que indicam os povos que já foram extintos e nós éramos uns dos que tinham sido extintos (Ailton Krenak, em Vozes da Floresta).

Notas:

[1] A glória futura será tão grande que, em comparação, todo o pecado e sacrifício pelo caminho se mostrarão razoáveis, racionais — creem.

[2] Se afastar de uma História eurocêntrica é uma árdua tarefa, requer uma soma de diferentes esforços e uma mudança de certos paradigmas interpretativos. Para começar, como o presente texto vem afirmar, as histórias dependem de registros, logo, as mesmas podem ser apagadas, deformadas, minimizadas. Assim sendo, o que aconteceria se todos os livros que eu li fossem subitamente queimados, sem restar cópias? Então, minhas ideias seriam “sem precedentes”, geniais invenções, um “berço”. Não obstante, quanto a esse mesmo problema de preservação ou falta de: a pedra dura mais que a madeira. Ou seja, os rastros posteriores tendem a privilegiar culturas em materiais mais duráveis — e estamos falando de uma durabilidade milenar que pode ter sido irrelevante para a maioria das sociedades humanas ao longo da história — , dando a impressão de simplicidade e “primitivismo” (de tristeza pública) para sociedades que hoje são imaginadas a partir de uma quase completa lacuna. Logo, o mesmo fogo que pode me tornar um gênio sem antepassados literários, pode apagar a maior parte da minha criação e queimar a minha inteligibilidade aos olhos de longínquos reviradores de tumbas. Embora hoje a arqueologia munida de satélites e olhares mais atentos esteja revelando vastos rastros de uma grande civilização amazônica pré-colombiana, por exemplo, a história sempre encontrará limites. Como bem sabem os admiradores de fósseis, talvez, nunca apreciaremos a penugem dos dinossauros, em sua devida dignidade. Dito isso, num desses vitais casos práticos, o registro histórico disponível exige um grande labor de quem se preocupa em saber quais os antecedentes do capitalismo, para além de um súbito ponto de nascimento na Europa, caso do historiador Ferdand Braudel (ver A Dinâmica do Capitalismo). Se pensarmos no desenvolvimento do comércio feito pelos árabes, ou no resgate que os mesmos fizeram de pensadores gregos, como Aristóteles, e na “coincidência” de que os moçárabes ibéricos (bem descritos por Gilberto Freire em O Colonizador Português: Antecedentes e Predisposições) foram os pioneiros das grandes navegações e do sistema de trabalho escravo transatlântico altamente produtivo dos engenhos, então, nem como violões e nem como heróis a ideia de Europa pode monopolizar a cambaleante trajetória imperial das sociedades com Estado. Esforço relevante, vale acrescentar, no rastro de uma história mundial da dívida, é o de David Graeber, que prefere recortar como sociedade ocidental, em oposição à Índia e à China, uma junção da Europa com o Mundo Islâmico. Nesse mesmo trabalho, Graeber salienta a centralidade da economia chinesa no que havia de transações internacionais, na altura em que as Américas são “descobertas”, uma vez que era a demanda chinesa por ouro que valorizava o ouro saqueado pelos espanhóis no México e Peru — que, ainda assim, acarretou a grande inflação na Europa, como aborda Silvia Federici. Meus conhecimentos históricos são muito humildes, mas bastam para vislumbrar o tipo de trabalho que precisa ser feito para uma sólida emancipação do pensamento. Porque, além do mais, reavaliar a história registrada implica em se livrar dos valores que tornam as ruínas de Estados tão mais preciosas do que os rastros de sociedades sem Estado. É sintomático que uma síntese da história geral da África, organizada pela UNESCO, se ocupe tanto em destacar e exaltar aquilo de original que no continente se assemelhava — ou que poderia vir a se parecer — com o modo de vida de seus recém “expulsos” colonizadores. Em resumo, não se trata de abolir a Europa, de negar a ela qualquer valor, basta parar de enxergá-la neuroticamente em todos os confins da realidade concebível.

[3] Ainda que um objeto ultrapassado não seja considerado um autêntico antepassado histórico de outro objeto, não deixará de ser classificado como um equivalente aos factualmente antepassados históricos do seu “sucessor” (superador), seja por se “assemelhar” a esses ou por seu “rendimento” equiparável. Além de destinar aquilo que ficou ultrapassado à irrelevância futura, já que sua relevância terminou no dado momento em que foi atingido e incorporado por outrem, inversamente, esse movimento simbólico de temporalizar (tornar datado) coisas vivas visa produzir constantemente um passado quase científico para engrandecer os objetos dominantes (de maior passado), que se impuseram aos demais como sucessão. Falo em termos de objetos, mas isso bem se aplica a pessoas e outros seres vivos.

[4] O nascimento de Jesus como calendário, o sistema métrico internacional ou a linha evolutiva dos grupos de homos sapiens de pele clareada não são pontos de referência impostos por uma mera vaidade individual qualquer. Pontos sociais de referência não são meros acidentes históricos, antes resultam da colisão entre instituições (entre socializações). Os tipos particulares que acabam ganhando, podem até ser ao acaso cultural, mas as referências em si se vinculam a necessidades, anteriores ou posteriores, quer originadas pelo contato amigável quer elaboradas como instrumentos de domesticação empregados por uns contra outros. Melhor dizendo, certas configurações sociais, uma vez construídas, apresentam certos desafios aos que se encontram presos dentro de tais construções — por exemplo, o desafio da comunicação — , independente se os ali localizados amam ou odeiam sua prisão residencial. Isso não parece significar que a necessidade por certos pontos de referência ou certos modos particulares de atender tais demandas sejam imunes a revoluções. Se o Sol é uma referência anterior aos próprios humanos, logo, “natural”, o que será que impede que os igualmente pensantes (“homo sapiens”) se mudem para fora da jurisdição solar?

[5] A medida dessa viabilidade ou falta dela é, justamente, o que dá ou não relevância à antiguidade e privilegia a história (mais potente) de um dado objeto com atualidade vigente, pois se considera que o melhor dos mundos é o mais competitivo e meritocrático, no qual apenas sobrevive aquilo que obtêm sucesso em dominar o que padece. Ao passo que um ambiente de preservação mais tolerante levaria a um reprovável mundo povoado por seres e modos “defeituosos”.

[6] A dificuldade em dar destino (geográfico) para todo o lixo produzido no capitalismo é um revelador sinal de que, embora seja fácil terceirizar problemas, é muito difícil se livrar de tantas e crescentes coisas indesejadas de uma vez por todas.

[7] Contemporâneo não significa instantâneo. As coisas demoram para se mover, encontrar, comunicar ou colidir. Ainda, o paralelismo, a desconexão, é outra possibilidade. Nesse caso, o presente pode incluir muitos universos, microcosmos, calendários, mundos isolados, etc, e que não deixam de assim o ser mediante à mais tímida espiada ou ao mais leve esbarrão.

[8] A minha aposta é que a era da inteligência artificial, da obsolescência do trabalho humano e da crise ambiental encherá muitas cabeças de perguntas.

--

--

Pii

Transumanista crítico da ideologia do progresso. Ateu a procura de mais sentidos para a vida, além dos limites do materialismo utilitarista. Pessoa criativa.