Pecado e Estigma

Pii
5 min readNov 19, 2022

Um acontecimento se passa e contrária a vontade de alguém.

Será essa realidade transcorrida consequência da ação ou omissão de alguma comunidade ou pessoa?

Primeiramente, para que surja um responsável perante uma situação é preciso delimitar que um fato ou sucessão de atos foi determinante para que essa situação — e não outras — ocorresse. Em seguida, um indivíduo ou grupo em participar pode ser responsabilizado por essa ocorrência.

Sob qual propósito, ou pretexto, se mobiliza politicamente uma compreensão da realidade social, em dado momento e local, baseada no rígido e limitado recorte de certos eventos e identidades?

O nível de complexidade dessa consideração sobre o real, da averiguação, estará atrelado ao tipo de resposta que esse entendimento, esse veredicto, deverá embasar.

O desafio de um crime não se limita à existência de um mistério na determinação dos acontecimentos e dos envolvidos. Sempre implicará na crucial separação entre a parcela da realidade pertinente e o ponto a partir do qual as relações de causa e efeito deverão ser ignoradas ou rebaixadas a algo secundário.

Alguém comete um pecado, ou um crime, ao efetuar um ato que produz alguma lesão. Então, se o prejudicado for a própria pessoa, apenas a noção de pecado irá invadir a consciência e privacidade do autor. Já se a ação for afetar a outros, em modos que sejam tipificados pelas normas, será possível falar em culpa por um crime.

O interessante de pensar sobre um eventual prejuízo a terceiros é que, caso esse não exista, hipoteticamente falando, a ação que repercute apenas no espaço particular do indivíduo deveria ser legada à liberdade e consciência do mesmo, na jurisdição particular da privacidade.

Contudo, existe algum espaço que seja realmente privado ou isso seria uma ficção da propriedade privada? Quer dizer, da mesma forma que a propriedade privada é uma apropriação da natureza e do trabalho coletivo, não seria todo indivíduo e espaço individual constituídos, em seu conteúdo imaterial, também pelo mundo ao redor?

Com isso em mente, ainda assim, da mesma forma que é possível conceber um usufruto individual, que seja exclusivo ou preferencial, sobre certos recursos, em certos contextos, também sobre criar uma autonomia relativa ao indivíduo não só parece uma ficção útil, como algo justificável dada a variedade de comportamentos ou necessidade de maior variação. Adicionalmente, ao longo do tempo, levar em conta a conduta individual promoveria um respeito aos assuntos comuns também originado nas consciências individuais. Para tanto, não é preciso comprovar a existência prévia de um livre arbítrio relativo, de um indivíduo, mas antes seria uma forma de buscar construir, por escolha política, esse grau de autonomia individual, de incentivar um movimento em direção a uma individualização amistosa — movimento este que não precisa vislumbrar um ponto de chegada de extremo individualismo.

[Obviamente, não se trata de lançar baleias pelos ares na esperança de que elas comessem a se comportar à moda dos pássaros. Empoderar indivíduos, dando a estes algum espaço de jurisdição, requer municiar estes com os recursos necessários para cultivar tal espaço. Essa liberdade particular tanto será melhor nutrida por coletividades acolhedoras e estimulantes, como também atuará em favor desses laços.]

Se o individuo não é dado e sim projetado pelo esforço social, os conjuntos que o agregam não devem ser tomados como mais firmes e reais, menos a deriva perante a sorte particular, isto é, a natureza e as sociedades, formadas por muitos indivíduos, por seres humanos e inumanos, em sua existência dependem de tais partículas, de tais unidades menores. Retomando a questão de quem lesa apenas a si mesmo em um ato, dada essa ressalva, é possível identificar uma tensão coletiva que arrisca invadir qualquer autonomia, na medida que a força de trabalho, o valor individual, compõe a força e agência do social ou natural. Portanto, quem age contra si, em certo sentido, pode apenas reproduzir (ecoar) uma agência que o engloba, não sendo o autor determinante da ação, ao mesmo tempo que sua ação afeta negativamente aquilo que o engloba. Sem contar os descompassos que podem caracterizar a autopreservação de subgrupos e indivíduos versus a do conjunto maior, em dado contexto. O que configura um problema é bastante complexo e admite muitas perspectivas.

Uma vez que uma situação seja posta em causa, é possível admitir que alguém é responsável por algo e, ao mesmo tempo, afirmar que a sociedade que condiciona esse alguém não deixa de ter a sua responsabilidade ou culpa.

Como hierarquizar os envolvidos, ora pessoas tomadas separadamente ora consideradas como partes de multidões? Se a intenção é “atacar a fonte do problema”, a decisão sobre a escolha do alvo da intervenção dependerá do poder do atacante interventor. Assim, as vezes um drama de gerações será “encerrado" com a prisão perpétua ou pena capital de um ser criminoso, tido como sem genealogia, devido a interpretação de que seus atos se explicam suficientemente por sua trajetória de vida particular. Noutras, uma multidão diversa, dinâmica e complexa será reduzida a uma população estereotipada e mirada como um agregado de inimigos, a serem destruídos ou redimidos.

De qualquer forma, por que a resolução de um problema deve partir de uma ação, repressão ou mudança comportamental promovida principalmente pelo ou sobre o culpado? E se esse culpado tiver menos recursos para investir nessa reparação? Não seria melhor que a responsabilidade por resolver o crime pudesse ser endereçada não de acordo com a culpa ou autoria mas sim conforme a condição de cada um para colaborar com a solução?

Na prática, embora apenas o culpado seja eleito para sofrer uma punição que lhe cause prejuízo, o próprio processo judiciário como um todo de se fazer justiça requer a participação de inúmeros atores e entidades “inocentes”. Mesmo sem culpa, as partes interessadas numa resolução precisam se responsabilizar, ao menos o suficiente para passar essa responsabilidade adiante, para transferir a outros o encargo, por bem ou por mal.

A equalização entre responsabilidade e sofrimento, via punição, no caso de responsabilizar mais quem tem mais recursos para reparar, levaria à absurda decisão de punir a sociedade como um todo por suas imperfeições. Por exemplo, diante do problema do desmatamento, no lugar de elaborar uma política para defender os biomas, a reação seria de infligir sofrimento adicional ao conjunto da população.

Será que ao fazer um culpado sofrer, longe de se realizar uma ação que vise corrigir problemas, o papel do sofrimento seja apenas o de converter o agressor também em vítima, por meio da dor? Será a punição, primeiramente, uma via geral de expiação de culpa? Em outras palavras, nesses termos, o violentador perderia o seu papel de malfeitor para renascer como vitimado pela punição, liberto da culpa e nivelado por baixo (rebaixado) aos demais.

Uma vez convertido em vítima, abalado e deteriorado pelo veredito, estará esse grupo ou indivíduo em melhores condições de reparar os possíveis prejuízos provocados por seus atos? Falo não apenas da experiência do cárcere, como também de infelizes tratados, que tantas vezes empurraram sociedades brutalizadas pela barbárie para um pouco mais perto do precipício.

O que acontece com aqueles que não são devidamente punidos nem inocentados? Quando não ocorre responsabilização ou consequência judicial diante de um crime ou lesão ao social? Qual o destino dos portadores de culpa não corrigidos e expiados pela punição? É para responder a essas questões que eu quero focalizar as micro punições, ou punições de difícil contabilização, e o estigma sobre os pecadores.

O estigma enquanto chuva de tribunais paralelos e não declarados.

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Pii

Transumanista crítico da ideologia do progresso. Ateu a procura de mais sentidos para a vida, além dos limites do materialismo utilitarista. Pessoa criativa.