MOROZOV, Evgeny & BRIA, Francesca – A Cidade Inteligente: Tecnologias Urbanas e Democracia [2018] [Resumo Completo]

Pii
19 min readMar 28, 2023

Parte 1

O adjetivo smart, sem muita precisão, ganha conotações de inteligência, de sistemas responsivos ou de sustentabilidade. Falar em smart city pode significar meios para um “uso sensato e ecologicamente sustentável dos recursos da cidade” (p. 16) ou a presença de dispositivos inteligentes e interativos para abolir contratempos urbanos. Na medida que a implementação e difusão das cidades inteligentes tem se centrado em corporações e no objetivo de atrair “cidadãos inteligentes” e “dinheiro inteligente” (“economia criativa”), é preciso localizar a crítica a tais processos no neoliberalismo, como principal fator de formação dessas cidades, até porque as cidades em geral são locus de acumulação capitalista. A geopolítica dessas cidades do futuro, tão atenciosamente propagandeadas pelas principais potências — EUA, China e Alemanha — , é outro fator que não pode escapar ao debate: “a Índia […] prometeu arrecadar 1 trilhão de dólares para desenvolver mais de cem smart cities nos próximos anos” (p. 20).

As relações entre infraestruturas tecnológicas e pautas políticas não devem se prestar a causalidades lineares e previsões fáceis, quer no revestimento do neoliberalismo com tais infraestruturas e na conversão de dados em commodities, quer nos potenciais de infraestruturas tecnológicas desenvolvidas sob orientações distintas e opostas aos valores neoliberais.

No contexto desse trabalho, “smart” se refere a qualquer tecnologia avançada a ser implementada em cidades com o objetivo de otimizar o uso de seus recursos, produzir novas riquezas, mudar o comportamento dos usuários ou prometer novos tipos de ganho no que se refere, por exemplo, à flexibilidade, segurança e sustentabilidade — ganhos que decorrem essencialmente do ciclo de retroalimentação inerente à implementação e ao uso de dispositivos inteligentes providos de conectividade, sensores e/ou telas (p. 21-2).

Capítulo 1 – A Smart City: Uma Contra-História

A defesa da smart city subjaz em pura publicidade corporativa, a qual evita mencionar precedentes tecnológicos do conceito (cidade midiática, informacional, telemática…) ou evocar aqueles ecológicos (cidade verde, sustentável, carbono-zero…). Dentre os principais promotores do conceito figuram empresas como a IBM. Quanto às motivações, se dividem em normativas, referentes a metas de longe prazo, essas a serem finalmente atingidas com o suporte de tecnologias avançadas, e motivações pragmáticas, como gestão de infraestrutura, policiamento, aporte adicional em mega-eventos e enfrentamento de problemas crescentes, como congestionamentos. Estima-se que o mercado de smart city atinja a cifra de 3 trilhões de dólares em 2025, ano em que a Internet das Coisas (IOT) deve movimentar entre 3,9 a 11$ trilhões.

Exemplos corporativos do setor são: a Siemens, que atua com infraestrutura preditiva, automação predial e indústria 4.0; a IBM que instalou alguns Centros de Operações Inteligentes (COI) em cidades como o Rio de Janeiro (2010), onde por meio do cruzamento de dados diversos oferece aporte em infraestrutura e segurança pública; a Cisco, na Internet de Todas as Coisas, presente em inúmeras cidades pelo mundo; e a Phillips, com iluminação inteligente e um modelo de negócios que torna seus serviços prontamente atualizáveis para cidades que queiram investir.

As iniciativas que envolvem o cruzamento e a análise de dados diversos, esbarram em questões de privacidade e, por outro lado, trazem artimanhas como a de driblar polêmicas como a da vigilância e controle excessivos sobre os cidadãos ao adicionar, por exemplo, serviços de policiamento como parte indispensável do pacote das smart cities.

Capítulo 2 – Modo Smart e Neoliberalismo

A promessa neoliberal de descentralização se associa diretamente com a lógica de ranqueamento e competitividade imposta às cidades, a qual se mune da mineração e análise de big data.

No Ocidente, as smart cities estão mais associadas a processos de privatização e subcontratação privada de serviços antes geridos diretamente pelo Estado. Na Ásia, em contraste, as inúmeras cidades erguidas do zero visam a urbanização ou a formalização de indústrias e serviços até então informais, além do objetivo de atrair capital estrangeiro.

O ranqueamento de cidades pode ser entendido como parte da sociedade da auditoria, de Michael Power, onde o melhor aproveitamento de ativos, até então direitos, viabiliza a comoditização de soluções — para as mais diversas demandas sociais e de infraestrutura — , trazendo para os processos atores para além das empresas de tecnologia, tais quais bancos, instituições financeiras e consultorias. A própria lógica de auditoria vende a prática de contratos por metas — nos quais a iniciativa privada só é paga mediante o cumprimento de metas preestabelecidas — , em geral, contratos de impacto social. Na verdade, estes últimos costumam seguir a lógica de monitorar e extrair valor ao máximo dos recursos administrados, elaborando e controlando estatísticas complexas, quer para cumprir os objetivos quer para mascarar fracassos e receber mesmo assim.

A lógica da financeirização na gestão de infraestrutura lucra mais com a especulação, com promessas, do que com qualquer planejamento de longo prazo. No setor, os investimentos se dividem em duas categorias: greenfield, quando a infraestrutura é erguida do zero; e brownfield, quando se trata de fazer negócios a partir de infraestruturas já existentes. Em nome do lucro a tendência é a de corte de custos, perfilamento de consumidores para cobrança diferencial e uso intensivo da infraestrutura — a partir de oferta responsiva. O exemplo brasileiro dos Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepacs), que operavam como produtos financeiros — diversas vezes movimentados — e, de fato, empreendimentos em infraestrutura, teve por efeito a especulação imobiliária e gentrificação, priorizando obras faraônicas em detrimento de alocações que melhor beneficiassem a população.

De modo revelador, Richard Florida, o prosélito-geral da “classe criativa” e da “cidade startup”, agora se tornou o maior fã dos “distritos startup”, elaborando (como seria de esperar) rankings de distritos baseados em suas dinâmicas smart ou startup (p. 54).

Nessas cidades do futuro é possível perfilar e fazer uma análise de risco dos potenciais inquilinos.

Capítulo 3 – Cidades de Keynesianismo Privado

Morozov e Bria defendem que o neoliberalismo ou seu keynesianismo de bem-estar social privado são fenômenos que transcendem a escala de operações locais de uma cidade, assim, seu enfrentamento escoa em iniciativas maiores e externas, especialmente aquelas como as grandes empresas do Vale do Silício, a atual última fronteira desse keynesianismo privado. Para definir este último, os autores destacam (1) o papel do barateamento do consumo — viabilizado pela tecnologia e pela precarização — como contraponto da queda salarial real, (2) a viabilização de trabalhos mais flexíveis (e precários) e os rendimentos da economia do compartilhamento (ou especulação).

A Uber converte um carro privado, um bem de consumo, em um ativo, um bem de capital, na lógica da economia do compartilhamento e viabiliza corridas mais baratas que atenuam os efeitos da corrosão geral dos salários. A isso se soma os grandes investimentos financeiros na empresa, o que permite tomadas de mercado agressivas, com prejuízos de curto prazo para ofertar corridas a preços que eliminem a concorrência. O sucesso é tanto que, em cidades pequenas da Flórida e de Nova Jersey, já existem corridas de Uber subsidiadas pelas prefeituras e, em Washington D.C., a Uber já presta serviço para o Estado no transporte de pessoas com mobilidade reduzida: “[…] a Uber está mirando no setor mais lucrativo — corridas garantidas pelo governo — e está se tornando parte do sistema de transporte público dos Estados Unidos” (p. 61).

A lógica neoliberal estabeleceu o investimento em imóveis privados, mesmo que via endividamento, como os investimentos mais seguros e desejáveis. A Airbnb seria o novo passo nessa lógica, ao converter casas próprias em serviços de hospedagem e fontes de rendimentos extras aos proprietários, que passam a sonhar com a “diária sem fim”, do fazer o ativo suar.

Entre as dificuldades na regulamentação dessas empresas — os autores também citam o Facebook — está a capacidade delas de mobilização de usuários para defender os interesses corporativos das mesmas. Nesse sentido, regulamentações agressivas ou interrupções e banimentos se mostram cartas fora do baralho. Uma das metas dos governos, ainda assim, é impedir que peixes grandes, como grandes locatários, se camuflem como meros usuários desses serviços e passem a operar de modo desregulamentado. Dadas as dimensões dos desafios, plataformas públicas das próprias cidades seriam a alternativa.

Capítulo 4 – Austeridade Smart

No fim das contas, quem controla os meios de produção da maior parte dos dados consegue a melhor inteligência artificial — e faz com que todos dependam dela, que poderá ser desenvolvida como um serviço acessível apenas por meio de um sistema baseado em permissões [para invadir a privacidade de mais dados] (p. 68-9).

O modelo de negócios de empresas como a Google se baseia em obter dados para desenvolver inteligência artificial, os anúncios por vezes apenas viabilizam a operação que requer acessibilidade econômica no uso de tecnologias que coletem dados. Já o incentivo para as cidades em adotar tais serviços consiste na gratuidade ou promessa de economia. Em troca de dados de usuários ou do compartilhamento de dados governamentais, empresas de tecnologia podem oferecer serviços gratuitos, como internet grátis, ou podem otimizar infraestruturas já existentes, por exemplo, que melhorem o trânsito ou combatam doenças. Na medida que a austeridade fiscal incentiva a adoção de novas tecnologias, torna-se atrativo embarcar em novas rodadas de tecnologia que viabilizem maiores cortes e um “melhor desempenho”. Cognificar processos, por vezes, pode significar simplesmente um registro inédito que permite instituir novas métricas e com elas novas metas para o controle de gastos e rendimentos das cidades.

Ao mesmo tempo em que diversas tecnologias desestabilizam antigos ramos de atividades, a culpabilização individual pelo desemprego se sustenta nas possibilidades ou promessas de requalificação, pelo aprendizado de programação e novos saberes, sem contar a naturalização de postos precários abertos via inovações tecnológicas.

Os autores mencionam a criação de mercados de dados de cidades, voltados à comoditização dos dados. A ideia é disponibilizar dados para que empresas desenvolvam soluções urbanas munidas com eles, embora a comercialização direta de certos dados também aconteça.

Capítulo 5 – Soberania Tecnológica: Uma Solução Possível?

Embora o enfrentamento em nível local se mostre mais factível, os limites da cidade são insuficientes para lidar com corporações globais e infraestruturas estabelecidas a nível de nação ou internacionalmente. Assim, é preciso lutar pela autonomia e independência dos municípios na elaboração de políticas públicas e na regulamentação sobre aqueles que operam em seu locus. A efetividade dessa luta depende, entre outras coisas, de coalizões de cidades perante inúmeras pautas. Na contramão, acordos comerciais bilaterais ou multilaterais — a exemplo do Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP) e da Parceria Transpacífica (TPP) — interditam qualquer papel das cidades no controle da iniciativa privada ou qualquer municipalidade na infraestrutura dos processos que atravessam as cidades.

A “metautilidade” [ou dados produzidos sobre ou na utilização de serviços e aplicações diversas] seria uma espécie de infiltração de sensores, dados e algoritmos que se espalham pela vida urbana e vão se tornando necessários e imperativos nos mais diversos processos demandados pelos cidadãos, em outras palavras, refere-se à dinâmica pela qual esses recursos inteligentes penetram toda a infraestrutura e vida urbana. O problema aqui é que o controle sobre essa metautilidade nas mãos das corporações vai excluindo cada vez mais a coisa pública, o governo, de qualquer papel relevante.

Para pensar em soberania digital é preciso ir além do acesso aos dados e dispor de condições efetivas de gerir e analisar tais recursos sequestrados pela iniciativa privada.

Como esse direito [à cidade] pode ser exercido de forma efetiva quando as infraestruturas já não estão sob controle público e as corporações definem seus termos de acesso – inclusive os termos que regulam como protestos contra elas poderão ser realizados (p. 80-1)?

Algumas cidades já se esforçam para oferecer gerenciamento alternativo (não-privado) de dados de cidadãos, fornecimento cooperativo de serviços (com parcerias público privadas) e na solicitação de dados extraídos por corporações. A questão é que tecnologias digitais por vezes partem de uma infraestrutura difusa, como aparelhos celulares, o que as tornam de mais difícil municipalização ou controle governamental. A isso se soma a presença de corporações estrangeiras muito mais imunes a esforços locais.

Se as empresas investem em um grande esforço para promover a smart city como um futuro inevitável, é preciso propor novos vocabulários e ideologias contrárias às visões disseminadas por essas empresas. Além do mais, a ausência de métrica e monitoramento, a presença de lacunas ou privacidade, pode se mostrar compatível com a democracia.

Se o lema da quantificação neoliberal é “o que não pode ser medido não pode ser administrado”, então a resposta não neoliberal mais apropriada seria “o que não pode ser administrado não pode ser privatizado” (p. 85).

No neoliberalismo não existe desafio para a obtenção de privacidade como serviço pago ou permutado por outros dados, o desafio é conservar a privacidade como um direito.

Capítulo 6 – Intervenções Estratégicas e Alianças Potenciais

No lugar de serviços oferecidos por empresas de tecnologia e regidos por normas de direito privado, recursos como dados, conectividade e poder computacional devem ser vistos como fundamentais. Para sustentar as novas pautas atreladas ao desenvolvimento tecnológico sequestrado pela iniciativa das smart cities um caminho promissor é se vincular a e se inspirar em lutas correntes de movimentos sociais. Exemplos podem ser identificados na auditoria cidadã sobre dividas públicas, a fiscalização civil sobre licitações ou a observação de facilitadores privados de parcerias público privado. A necessidade pela aquisição de licenças de uso de softwares privados, a título de exemplo, pode dar lugar a leis que fortaleçam o uso de software livre ou de código aberto.

Recuos tecnofóbicos e ameaças de regulamentação crescente — sem que sejam oferecidas alternativas construtivas — angariariam pouco entusiasmo entre cidadãos cujas expectativas quanto à inovação disruptiva já vêm sendo moldadas por suas experiências com o setor privado (p. 90).

Dados extraídos no contexto urbano, referentes a pessoas, ambiente, coisas, transporte ou energia deveriam obrigatoriamente ser entendidos como bens de uso comum.

[…] cidades e cidadãos, e não empresas, devem ser donos dos dados produzidos em ambientes urbanos e devem poder utilizá-los para melhorar os serviços públicos e impulsionar suas políticas públicas (p. 91).

É preciso confrontar afirmações da iniciativa privada a partir do acesso a dados que informem novos olhares, quer dizer, o monopólio sobre os dados impede que empresas sejam confrontadas em suas posições. Nessa linha, dados públicos viabilizam serviços públicos competitivos frente às empresas de tecnologia.

Parte 2

Capítulo 1 – Para Além das Smart Cities: Alternativas Democráticas e Comunitárias

É preciso se opor à tecnologia a serviço da austeridade neoliberal. O direito à cidade é constituído por um conjunto de direitos ao acesso de serviços públicos essenciais, dentro do qual se encontra os recursos tecnológicos de ponta. Barcelona é um bom exemplo de cidade rebelde que abandou o custeio de agencias de análise de risco — suporte de uma administração neoliberal — para redirecionar os recursos à ampliação de direitos. A cidade se tornou expoente da resistência local e coligada ao adotar medidas como a do financiamento coletivo e a de plataformas colaborativas, a fim de viabilizar projetos populares e a ampla consulta e participação da população nos mesmos, sob o governo da prefeita Ada Colau. Dentre as iniciativas da prefeita, os autores destacam a ocupação de casas e os esforços para regulamentar a Airbnb, além da meta de municipalizar o controle sobre a água e a energia. A autora Francesca Bria atua no escritório de inovação digital da cidade.

Em 2017 fora elaborado o Plano Digital, visando a construção de uma soberania tecnológica, na qual os recursos sejam vistos como bens públicos e a tecnologia alocada segundo a escolha e as metas populares. Nesse mesmo intento a cidade investiu em workshops de cocriação para incentivar seus cidadãos a tomar parte no processo de desenvolvimento de uma smart city não-neoliberal. O direito a dados da cidade abertos, no contexto, mostra-se vital para o desenvolvimento de alternativas públicas aos produtos e serviços das gigantes de tecnologia. Em vistas desse desafio, as cidades precisam desburocratizar seus processos estatais e aprofundar a transparência para agilizar os processos e combater a corrupção. Recursos essenciais, já mencionados, precisam ter seus custos de acesso reduzidos.

Os dados abertos e a análise de dados empregada em favor da população podem ser alguns dos mais importantes ingredientes para habilitar a democracia direta ou participativa na governança de com questões complexas. Mas não se trata de fortalecer um Estado centralizado, na verdade, a aposta é em organizações colaborativas que descentralizem e, ao mesmo tempo, recusem o mercado. Por fim, entre as metas de Barcelona, destacam-se a implementação de uma renda básica universal e de uma política de dados gerados em rede como bens públicos.

Capítulo 2 – O Direito à Cidade Digital: Rumo à Soberania Tecnológica

É preciso incentivar regimes alternativos de propriedade de dados, inovações com valor social e sistemas monetários locais complementares.

Um dos impasses ao acesso a dados é que, embora abundantes, frequentemente estão cercados em silos privados, ou dispersos de forma fragmentada e sem um padrão definido. Para reverter essa tendência seria possível empregar dinâmicas de compartilhamento de recursos públicos como fomentadoras de produção de dados operáveis. É citado o MyData que propõe um gerenciamento de dados humanizado, preocupado com os cidadãos, devidamente autorizado, e que pode servir a finalidades secundárias, incentivando a inovação. Já o MiData visa armazenar, gerir e controlar dados pessoais, além de empregar tais dados para informar a qualidade de políticas públicas. Além da disponibilidade de dados, redes públicas de sensores para captar informação devem ser implementadas ou expandidas.

A meta desse processo é criar um ecossistema descentralizado de inovação que atraia uma massa crítica de agentes de inovação capaz de redirecionar a economia sob demanda centralizada e alimentada por dados em direção a uma economia descentralizada, sustentável e baseada em bens comuns (p. 115).

A preocupação com tecnologia e dados nos serviços públicos precisa incluir a dimensão da acessibilidade voltada ao atendimento de cidadãos com deficiências. Além disso os sistemas e seus contratos precisam ser abertos, modulares e interoperáveis (replicáveis em outros locais). Para evitar a dependência de longo prazo é preciso priorizar software livre, código aberto, padrões e arquiteturas abertos, dispor de reservatórios de códigos para reaproveitamento, evitando redundância, além de apelar para práticas de aquisição conjunta de tecnologias. Os autores citam muitos exemplos de cidades que efetuaram migrações para código aberto e obtiveram expressivas economias.

Os serviços públicos precisam ser digitais por padrão, com uma tecnologia que prioriza o cidadão e emprega formatos abertos, incentivando sistemas abertos. Ainda, os contratos públicos devem incentivar micro e pequenas empresas, mitigando o papel preponderante das grandes corporações.

O Open Contracting Data Standards (OCDS) estabelece um padrão de dados contratuais abertos que disponibilizam informações sobre fornecedores, melhores ofertas de serviços e auxiliam no combate à corrupção em contratos públicos.

Barcelona foi pioneira ao lançar a Caixa de Reclamações Anticorrupção, com anonimato garantido via Tor e GlobalLeaks.

O futuro da economia sob demanda é crucial para a economia europeia, especialmente no contexto da atual crise de desemprego na Europa diante da rápida automação das linhas de montagem. Em resposta à automação de larga escala e à desregulamentação do mercado de trabalho engendrada pelo aumento da economia informal, algumas cidades estão lançando programas-piloto experimentais em políticas públicas de diversas áreas, que vão desde a introdução de programas de renda básica até novos programas educacionais voltados a ensinar Steam fields e fabricação digital em escolas (p. 127).

Para enfrentar a economia sob demanda [sem capital ou oferta fixos, quer dizer, onde os recursos proveem dos próprios “colaboradores” e o vínculo empregatício não é assumido ou estável] algumas cidades trabalham pela regulamentação das principais empresas que capitaneiam essas novas modalidades de negócios e exploração. Na lista de preocupações figura a transparência dos algoritmos, como meio para impedir a discriminação algorítmica contra consumidores, a exemplo da precificação dinâmica ou na oferta de seguros, serviços nos quais as empresas empregam dados e tecnologia para perfilar e cobrar de modo diferenciado e malicioso.

No setor de transportes, Moscou chegou a um acordo com a Uber para só permitir que a gigante tecnológica americana opere na capital da Rússia se a companhia usar motoristas de táxi registrados na prefeitura e compartilhar os dados de viagem com as autoridades locais […] A companhia aceitou compartilhar os dados de viagens com outras instituições públicas em cidades como Boston, Nova York e São Francisco [além de Moscou] […] Para os centros urbanos, o acesso aos dados da Uber é crucial para que se possa avaliar o impacto de sistemas de transporte nas cidades e para regulamentar de modo justo o mercado de táxis e as tarifas relacionadas a eles (p. 129-30) […]

A regulamentação sobre a Airbnb visa inibir a atuação de locatários ilegais que aumentam a demanda causada por turistas alojados irregularmente, com o consequente aumento geral nos preços de alugueis. Em Barcelona, a empresa conta com mais de 17 mil acomodações, se tornando um grande estorvo ao direito à moradia.

A conectividade como direito diz respeito à banda larga gratuita e a redes neutras. A isso se junta o desenvolvimento alternativo apoiado por cidades. A questão é que a arquitetura da internet passou por uma grande centralização, com plataformas privadas impondo uma governança e rentabilidade inacessíveis, no que configura verdadeiros jardins murados (ecossistemas privados), favorecidos pela viabilidade de erigir monopólios a partir do efeito de rede dos serviços — quando a quantidade de usuários define o valor de uma rede social ou plataforma e o tal valor atrai ainda mais usuários. Nesse cenário digital privado, as corporações ficam desimpedidas de empregar “técnicas de captura de consumidores por meio de sensores e mecanismos de vigilância” (p. 135), assim a necessidade popular é deixada de lado em nome dos modelos de negócios.

A Guifit.net é uma rede de telecomunicações comunitária, gratuita, aberta e neutra. Em Barcelona, funciona a plataforma de dados horizontal Cityos, que também opera na análise de dados. Essa plataforma de dados é parte da Sentilo, uma plataforma aberta de sensores e atuadores (IoT), presente e mantida por uma rede de cidades. Já o Making Sense e o Citizen Sense fornecem sensoriamento horizontal para monitoramento e preservação ambiental, que funciona com o fornecimento de um Kit do Cidadão Smart, de sensores com Arduino e de uma plataforma de compartilhamento dos dados obtidos. Em Londres, de modo similar, o Datastore, é um sistema aberto que disponibiliza estatísticas sobre economia, transporte, moradia e ambiente, abastecendo a população de dados sobre a cidade.

Hamburgo é um exemplo da luta pela remunicipalização, com a retomada do controle sobre a rede de energia, em um esforço de preocupação com a transição energética. Dentre as iniciativas protagonizadas em Berlim, fora criada uma cooperativa de moradores para gerir as redes elétricas, com cerca de 3000 pessoas levantando 13 milhões de euros em financiamento coletivo.

As cidades precisam estimular empreendimentos sociais e tecnológicos erigidos sobre estruturas digitais abertas, a exemplo da produção de conhecimento p2p, ou que empregam blockchains para descentralizar, bem como o uso de cooperativas de plataforma para soluções sem intermediário e geradoras de bens comuns.

Formas alternativas de propriedade pública e comum de plataformas ajudarão a criar uma economia mais democrática e que transcenda a lógica de sistemas privados de rede, orientados pelo mercado e por sua rentabilidade e que levem à apropriação de recursos comuns para ganhos privados (p. 148).

A contratação pública de iniciativas de inovação deve ser estimulada, sobretudo com investimentos nas áreas essenciais como saúde, educação, transporte. A relação público privado deve ser elaborada de modo que a pesquisa e inovação garantam um direcionamento público ao desenvolvimento e o acesso público às recompensas. Fundos de inovação, dentre outras formas de financiamento, podem ser uma boa alternativa para estimular iniciativas de menor porte, tanto privadas como cooperativas, reduzindo o papel do capital financeiro volátil e da lógica de incorporações predatórias.

Seul inova com o conceito de compartilhamento de cidades, aplicado em seus distritos, onde um conjunto de 63 serviços de compartilhamento são oferecidos — a exemplo de carros, estacionamentos, casas e livros — , visando metas sociais e o engajamento cívico. O La'Zooz, de Israel, é um aplicativo de caronas compartilhadas que usa uma versão de blockchain baseada em provas de movimento (tokens), no lugar de provas de trabalho computacional, para recompensar sua comunidade de colaboradores. A California App-Based Drivers Association (CADA), oferece representação coletiva para motoristas de aplicativo (Uber, Lyft, Sidecar, Toro Ride, Opali) e é gerida por um conselho de liderança eleito democraticamente.

Plataformas sob demanda tratam seus empregados como prestadores independentes de serviços, e não como empregados protegidos por direitos trabalhistas. As empresas se valem desse artifício para transferir a maior parte dos custos para os trabalhadores, para diminuir seu poder coletivo de negociação e para implementar mecanismos intrusivos e baseados em dados de reputação e de ranqueamento, a fim de reduzir custos transacionais (p. 153).

O Fairbnb, de Amsterdã, se propõe a ser uma alternativa ao Airbnb, com preocupação quanto aos impactos sociais dos alugueis de curta duração.

As iniciativas de inovação social digital englobam esforços na inovação colaborativa em rede, unindo agentes de diferentes países, em projetos preocupados com pautas como a de comunidades de pessoas com doenças crônicas (Cancer Research UK), a elaboração colaborativa de políticas públicas, comunicação anônima (Projeto Tor) e o movimento maker baseado em Arduino. Os autores também citam as cidades makers, preocupadas com a industria 4.0 e fabricação digital circular, como no exemplo da rede de 12 cidades ao redor do mundo que integram o Fab City.

O financiamento coletivo (Kickstarter, Indiegogo) é apontado como outra via alternativa para impulsionar a inovação. A plataforma Goteo é de código aberto e copyleft, o que garante livre acesso aos dados. Outro exemplo é a alemã Startnext, que aglutina por volta de 835 mil usuários. Ainda, o financiamento para iniciativas de inovação e impacto social pode se valer de premiações ou concursos, a exemplo do Nesta Centre for Challenge Prizes.

Diversos espaços de coworking, signatários do Manifesto Coworking, viabilizam o local e as conexões para o trabalho conjunto e empreitadas em startups, a exemplo do Startup in Residence (STIR) de São Francisco.

A renda básica é indicada como uma forma de lidar com a automação e com a transição para novos postos de trabalho. Alguns modelos compreendem-na como uma transferência de dinheiro que atualiza o sistema previdenciário, outros elaboram a medida como um pagamento de dividendos por produtividade automatizada. São citadas experimentos de renda básica em diversos lugares, sobretudo na Europa e nos EUA, em geral de curta duração (Oakland, Utrecht, Groningen, Livorno, Glasglow).

As moedas locais são um meio de incentivar a economia local, dentre outros incentivos mais localizados, se valendo tanto de relações de confiança quanto de uma arquitetura munida de inovações como as criptomoedas, com toda uma gama de novos serviços financeiros possibilitados e um forte efeito multiplicador [da demanda local fortalecer a oferta local, ampliando o poder de compra dessa mesma demanda]. Por exemplo, o Digipay4Growth oferece crédito de troca social anticíclico. Já o Sardex, da Sardenha, e o C3, do Uruguai, funcionam com compensações mutuas de crédito. Os autores destacam o planejamento participativo de moedas locais baseadas em blockchain ou no próprio bitcoin [não consegui compreender como o bitcoin pode ser apropriado ou resignificado localmente]. Exemplos mencionados ainda incluem a Suíça, Bristol, Nantes e Catalunha.

Modelos híbridos de democracia direta e representativa, nas modalidades on e offline, incluindo orçamentos participativos, submissão de propostas e discussões abertas constituem novas ferramentas para o engajamento cívico. O software de código aberto Consul serve de base para o Decide Madrid, uma plataforma de consulta e democracia direta, na qual qualquer um propõe e os residentes da cidade votam, além de gerirem um orçamento participativo — que em 2016, chegou a 60 milhões de euros. O Decidim Barcelona, também de código aberto e com uma arquitetura modular baseada em padrões abertos, permite inclusive o engajamento em projetos participativos municipais autônomos e conta com 27 mil usuários e mais de 11.7 mil propostas na plataforma. Dentre as principais frentes de ação na plataforma se encontra a mobilidade urbana com a implementação de superquarterões com substituição de vias para carros por áreas livres, ciclovias e faixas para transporte público. A iniciativa contou com assembleias off-line integradas à plataforma, bem como com análise de Big Data para acompanhamento dos resultados.

Os orçamentos participativos começaram em 1989, em Porto Alegre (p. 175).

A cidade de Porto Alegre conseguiu um nível de participação anual de 40 mil cidadãos, engajados na definição de propostas e prioridades orçamentárias. A prática se espalhou por mais de 140 municípios brasileiros, bem como Estônia, Nova Youk, Paris. Na capital da Islândia, o software de código aberto de e-democracia Your Priorities integra a plataforma Active Citizen que emprega inteligência artificial e realidade virtual, com reuniões on e offline, a serviço da democracia direta.

A proteção de dados pessoais deve ser entendida como um direito fundamental autônomo que ultrapassa o direito tradicional à privacidade — um componente essencial da liberdade contemporânea — para, assim, possibilitar que sejam evitadas sociedades fundadas no controle, na vigilância , na classificação e na seleção social (p. 178).

Capítulo 3 – Criando Alianças para Além do Capitalismo Predatório

Dados precisam ser compreendidos como parte essencial da infraestrutura urbana e indispensáveis à oferta de serviços públicos. Em resumo, os autores se opõem à conversão de dados pessoais e coletivos em ativos financeiros, numa commodity. Tais recursos cercados se tornam os ingredientes centrais no aprendizado de máquina e em modelos preditivos, tecnologias dedicadas à personalização de e em agregar valor a produtos corporativos, em um contexto onde somente algumas poucas empresas estadunidenses dispõem de poder computacional para processar o Big Data. Nesses termos, a busca por soberania tecnológica por parte das cidades envolve a promoção de dados como bens públicos, de renda básica, de moedas (digitais) complementares e da remunicipalização da infraestrutura. Para tanto as cidades precisam atuar em rede, unidas. Além disso, as cidades devem promover a ação colaborativa, cooperativa e de empresas de menor porte.

[Francesca Bria] como líder de projetos da agência britânica de inovação Nesta, conduziu a D-CENT de 2013 a 2016, a maior iniciativa em democracia digital e em moedas digitais da União Europeia (p. 186).

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Pii

Transumanista crítico da ideologia do progresso. Ateu a procura de mais sentidos para a vida, além dos limites do materialismo utilitarista. Pessoa criativa.